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porto do capim

Berço da cidade é símbolo de luta

publicado: 14/10/2024 09h27, última modificação: 14/10/2024 09h27
Comunidade ribeirinha enfrentou vários desafios, mas segue contando — e fazendo — história no Centro da capital
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Peixes, moluscos e crustáceos coletados no volumoso Rio Sanhauá formam parte do sustento das famílias de pescadores da região, uma herança que se mantém há 70 anos | Fotos: Roberto Guedes - Foto:

por Marcella Alencar*

Às margens do Rio Sanhauá, mora dona Maria de Lourdes, 78 anos, pescadora e agricultora ribeirinha que sobrevive do que a terra dá. “A primeira vez que eu entrei em uma canoa para pescar, aos 15 anos, fiquei chorando de medo, porque eu não sabia remar. Quem me ensinou foi o meu esposo, e todo dia eu ainda remo”, conta. Há mais de 60 anos, ela vive do que a natureza oferece, assim como outras mulheres que moram na região do Porto do Capim, que fica no Centro Histórico de João Pessoa.

Peixes, moluscos e crustáceos proporcionam parte do sustento de famílias de pescadores que ainda sobrevivem desse ofício, feito de maneira artesanal. Hoje em dia, a dinâmica territorial e de subsistência se reconfigurou, mas os traços identitários e a herança ribeirinha se perpetuaram ao longo das últimas sete décadas.

A história de Maria de Lourdes corre ao longo do Rio Sanhauá, enraíza-se nas suas margens e se integra ao seu manguezal. E não é a única. As famílias que lá residem foram recriando os laços de parentesco e mantendo formas de vida de forma integrada ao rio, que é berço da fundação da Paraíba — e, consequentemente, da sua capital —, em 1585. O nome, Porto do Capim, foi inspirado no grande volume de capim que chegava ali e que servia para a alimentação dos animais de tração. Eles eram responsáveis pelo transporte na cidade de João Pessoa, naquela época.

A comunidade ribeirinha, formada por moradores da Vila Nassau, da Praça 15 de Novembro, da Frei Vital e do próprio Porto do Capim, procurou manter viva a memória e o meio ambiente do lugar, da melhor maneira possível, apesar de todos os problemas diários que enfrentam. “Boa parte da vegetação desse mangue fui eu que plantei; antes, era só terra pelada. Aí, quando nasce um pé de mangue [árvore típica do bioma], a flor bota uma semente que se espalha, levada pela correnteza”, conta ela.

 Herança familiar

Natural de Boqueirão, interior da Paraíba, dona Maria de Lourdes chegou ao Porto de Capim quando tinha 15 anos — e, de lá, nunca mais saiu. O mangue e a comunidade se espalharam. Hoje, cerca de 500 famílias moram na região e têm uma forma de organização social própria, que utiliza os recursos naturais como parte da sua sobrevivência.

A pesca, a agricultura e o trabalho manual são algumas fontes de renda das mulheres ribeirinhas, práticas já utilizadas por seus pais e avós. Maria de Lourdes não pesca mais, mas planta feijão, inhame, batata e macaxeira, além de colher coco nas terras da Ilha do Sanhauá, do outro lado do rio. “Quando eu pescava, todo dia a gente ia lá. Com a rede de arrasto, a gente pegava peixe e vendia na rua”, diz. Atualmente, ela faz cocada, com a ajuda de uma vizinha, Célia Regina Coutinho, que a acompanha em diversas atividades e que também criou a sua família à beira do rio.

Outra vizinha, Maria da Penha Matheus, faz bolsas, mantas e outras peças artesanais. As filhas dela também se engajam nas atividades da mãe, ajudando-a no ofício. As três são um exemplo claro da colaboração mútua e da dinâmica territorial que se expandiu na região. É a partir de atividades manuais, agricultura e pesca, que as mulheres do Porto do Capim produzem parte das riquezas cultural e financeira da comunidade.

Esses ofícios fazem parte de um estilo de vida próprio da população local, que existe desde que as famílias passaram a habitar a região. “Os processos de sociabilidade e a linha de parentesco caracterizam, de forma específica, as chamadas ‘filhas do porto’ e os moradores do entorno. Algumas pessoas, de fora da comunidade, têm um entendimento errado sobre o estilo de vida dos moradores do porto, como se eles estivessem em um espaço degradado — o que não é verdade. Isso criou um estigma em relação a essa população”, explica o antropólogo Fábio Mura, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e coordenador do Comitê de Laudo Antropológico da Associação Brasileira de Antropologia.

História dos moradores locais é marcada pela resistência

O senso de coletividade e a sororidade estão presentes em todas as atividades diárias das mulheres. Diante dos problemas que foram surgindo, elas se reuniram e resolveram criar organizações que colaborassem para a manutenção da vida às margens do Sanhauá.

A partir daí, surgiram a Comissão Porto do Capim em Ação (2010), a Associação de Mulheres (2014) e as Garças de Sanhauá (2015), que são o resultado de uma longa jornada, nesses 70 anos de resistência ribeirinha. Essas organizações da sociedade civil (OSCs) desenvolvem ações de fomento e de preservação cultural e ambiental e de turismo ecológico, no intuito de salvaguardar aquele patrimônio cultural para a história de João Pessoa. 

Maria da Penha se dedica a fazer bolsas, junto com as filhas

Embora a vida no Porto do Capim soe como algo pitoresco, em relação ao cotidiano do resto da cidade — e não deixa de ser —, ela sofreu fortes influências dos processos de urbanização de João Pessoa, Bayeux e Santa Rita. A população precisou lutar por seu território, sob o risco de ter de sair de suas casas para reconfigurar a região, que sofre, de fato, com fortes impactos socioambientais. Isso gerou uma série de conflitos, que demandaram a intervenção do Ministério Público Federal na Paraíba (MPF-PB). Só assim veio a garantia para continuar em seu território original.

O MPF-PB ajuizou uma ação, em 2019, evitando que as famílias fossem retiradas do local e solicitou um informe técnico antropológico, afiançando que a trajetória dos moradores está vinculada ao lugar, organizada com fortes laços e senso de comunidade.

Além disso, no mesmo ano, a deputada estadual Cida Ramos (PSB) propôs o Projeto de Lei Ordinária (PLO) 319/2019, que declarava a comunidade do entorno do Porto do Capim como Patrimônio Histórico, Cultural e Imaterial do Estado da Paraíba. O intuito do PLO foi fortalecer o valor histórico e ecológico do lugar.

A organização comunitária resguarda a valorização da identidade cultural e das tradições locais, muitas vezes ameaçadas por intervenções externas. Sob o risco de passar por desapropriações, boa parte da comunidade resistiu na região e adquiriu o direito de ficar lá, além de ser contemplada com uma reforma prevista pelo Governo Federal, por meio do Novo PAC.

Turismo

A criação das OSCs rendeu frutos para o turismo. O projeto Vivenciando o Porto do Capim é um dos que exploram o turismo na área, com a oferta de passeios guiados. Esses passeios, por sua vez, são realizados pelo coletivo Garças de Sanhauá, com agendamento pelo número (83) 98884-7660 ou pelo perfil @turismoportodocapim, no Instagram.

Segundo Célia Regina, esse trabalho tem a força da juventude, principalmente das gêmeas Rayssa e Rossana Holanda. “Elas lutaram muito por nós, nesses anos todos. Todo mundo lutou, na verdade”, observa. Ela diz ainda que, antes de ganhar o direito ao território, a população local sofreu momentos de muita angústia. “A gente não dormia direito. Foi muito sofrimento, mas, graças a Deus, acabou”.

A matriarca da comunidade, dona Maria de Lourdes, é a memória viva de um legado que preserva a história e as tradições do Porto do Capim. Como uma figura importante, ela representa a resistência e a conexão profunda dos moradores com o território, transmitindo conhecimentos e inspirando a juventude local a continuar lutando pela cultura ribeirinha. “Estou aqui há mais de 40 anos. Não quero sair nunca daqui”, enfatiza.

Reconhecimento

As chamadas comunidades tradicionais são formadas por povos que desenvolvem uma relação específica com o território e o meio ambiente em que vivem — caso do Porto do Capim. No entanto, o antropólogo Fábio Mura explica que essa comunidade tem uma dinâmica territorial diferente, estruturada por laços de parentesco e vizinhança com forte cooperação mútua. Com base nessas condições sociais, o MPF-PB encomendou um laudo antropológico que analisasse essas características.

“O laudo foi realizado pela dinâmica de parentesco, com mais de 1,5 mil pessoas”, explica Mura, responsável por um dos relatórios técnicos e pelo laudo que ajudou a reconhecer a comunidade ribeirinha. O trabalho contou com dois geógrafos, quatro antropólogos e dois biólogos, que desenvolveram o relatório que serviu como base para encerrar o assunto no Superior Tribunal Federal (STF), pela então ministra Cármen Lúcia, com decisão favorável à permanência da comunidade no lugar.

Revitalização

Em solenidade com o governador João Azevêdo, o presidente Lula anunciou, em agosto deste ano, um investimento de R$ 100 milhões para prover o Porto do Capim de infraestrutura essencial. O objetivo é fortalecer a comunidade, melhorar o saneamento básico e as áreas de convivência. O projeto prevê ainda a construção e a reforma de habitações, com foco na valorização cultural do território.

O investimento faz parte do Programa Periferia Viva, vinculado ao Ministério das Cidades, do Governo Federal. No Guia do Plano de Ação consta que a abordagem de transformação territorial será ancorada na valorização da organização social e comunitária, com ações que dialoguem com o conjunto de necessidades identificadas em cada território.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 13 de outubro de 2024.