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bebês Reborn

Bonecas realistas viraram polêmica

publicado: 02/06/2025 09h55, última modificação: 02/06/2025 09h55
Apesar dos excessos, se bem utilizados, esses objetos podem cumprir até mesmo um papel terapêutico
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No caso de Priscila Almeida, os “bebês” amenizaram o luto pela morte de sua mãe | Fotos: Evandro Pereira

por Priscila Perez*

Pergunte a uma menina o que representa uma boneca em seus braços e ela certamente dirá que “é seu bebê”. Imersa nesse faz de conta, ela escolhe o nome, dá mamadeira, troca a fralda e a embala como se fosse real, criando memórias que só um adulto que nunca brincou de casinha ousaria desprezar. Nesse espaço entre a nostalgia, a brincadeira e o desejo de colecionar, os bebês reborn, bonecos hiper-realistas, viraram alvo de polêmica e desconfiança nas últimas semanas. Por trás dos vídeos virais e das notícias mal contadas sobre “mães reborn”, querendo pensão ou exigindo atendimento médico para suas bonecas, existe uma arte que transborda afeto.

Há mais de 10 anos como artista reborn, a artesã Vera Lúcia Leão Jordão Emerenciano, de 54 anos, sabe exatamente o tipo de encantamento que suas “bebês” despertam na clientela. A maioria das encomendas, aliás, vem de mães que presenteiam as filhas — não muito diferente das meninas que ganhavam suas primeiras bonecas antes dos anos 2000. Para ela, tirar as telas das mãos das crianças é, hoje, seu grande objetivo. “Tenho seis netinhas e dois netinhos. Prefiro mil vezes que eles estejam brincando com os “bebês” do que com o celular”, afirma.

Apaixonada por trabalhos manuais, Vera encantou-se com a arte reborn em 2012 e, de lá para cá, não parou mais. “Sempre fiz artesanato e gostava muito de boneca. A arte reúne justamente as coisas que mais gosto”, conta. Com 19 pontos de venda, distribuídos entre Pernambuco e Alagoas, já chegou a vender 89 bonecas em um único Dia das Crianças. “Por mês, são de 20 a 30 ‘bebezinhas’”, complementa. Apesar do sucesso, seu trabalho acabou virando alvo de críticas, principalmente de pessoas que, segundo ela, não conhecem a arte e baseiam-se apenas nas extrapolações vistas na internet. “Criticam sem conhecer nada, isso dói”, relata, destacando que não se trata de modismo, mas de um movimento que chegou ao Brasil nos anos 1990 e remonta à Segunda Guerra Mundial. Vera, inclusive, faz parte de um grupo, com pelo menos 150 artesãs de várias partes do país, que estão sendo afetadas pela avalanche de notícias falsas. “Tem pessoas dizendo: ‘Se você estiver com seu bebê reborn na rua, vou chutar a boneca e lhe bater’. Isso é violência”.

Entretanto, em vez de dar ouvidos aos comentários maldosos na internet, Vera tem preferido focar no que realmente importa: o trabalho com suas bonecas. Cada uma leva mais de uma semana para ficar pronta. São cerca de 20 camadas de tinta, idas ao forno, pintura a óleo e cabelo fio a fio. “É um trabalho realmente manual, muito detalhista. Dá para ver até os microvasos”, observa a artista. O mais impressionante, segundo ela, não é o grau de realismo, mas o acalento que cada uma dessas bonecas é capaz de proporcionar. “Eu já vendi para uma menina, no Rio de Janeiro, e o priminho dela quebrou a perna do ‘bebê’. A mãe ficou desesperada porque a menina só dormia com a boneca, e me ligava todas as noites. Quando a menina a recebeu [o bebê reborn] de volta, quase desmaiou”.

É por histórias como essa que a artesã defende com firmeza o valor do que faz. Enquanto nas crianças a boneca estimula a criatividade, o afeto e a empatia, nos adultos é possível ativar sentimentos semelhantes em contextos de vulnerabilidade emocional. Vera cita a Terapia da Boneca, uma abordagem usada para aliviar sintomas como agitação e ansiedade. “É incrível o que podem fazer numa mente que esteja precisando de acalento”, finaliza.

Refúgio para dor

Esse acolhimento é também terapeutico. A psicóloga e especialista em relacionamentos Joseli Medeiros destaca o uso dos bebês reborn em terapias com pessoas em situação de luto, ansiedade, depressão e até em casos de Alzheimer. “Embora sejam brinquedos, eles têm um papel significativo no cuidado emocional e psicológico de determinadas pessoas”, afirma. Em idosos com demência avançada, por exemplo, a boneca pode despertar sentimentos de carinho e proteção, além de reduzir a agitação. Já com mulheres que enfrentaram perdas gestacionais ou neonatais podem ajudar na elaboração do luto, permitindo a expressão emocional da dor.

Independentemente do caso, Joseli sublinha que o uso deve seguir critérios bem definidos. “O bebê reborn não deve ser um fim em si mesmo, mas um mediador simbólico. É preciso avaliar o discernimento da realidade, os riscos de fuga, a capacidade de simbolização”, pondera — isto é, se a pessoa compreende que se trata de um objeto, e não de um bebê real. Às vezes, ela simplesmente sente prazer em cuidar, vestir e mimar a boneca, e, se faz isso com consciência e limites, está tudo bem. “Por outro lado, um apego intenso pode indicar dificuldades nos relacionamentos interpessoais ou uma forma de fuga de vínculos reais”, alerta a profissional. Nesses casos, o uso inadequado da boneca pode provocar dependência, sintomas regressivos ou evasão da realidade.

No caso de Priscila Almeida de Souza, de 34 anos, esse acalento veio por meio das suas cinco bebês reborn: Mariana, Eloah, Lua, Luna e Ana Mel. O luto pela morte da mãe a levou para um ciclo de depressão do qual só conseguiu sair ao descobrir a arte reborn. Foi nesse universo que encontrou uma forma de ressignificar o momento e, ao mesmo tempo, aproxima-se de um desejo antigo — o de ter, finalmente, a boneca que lhe foi negada na infância. “Fui me organizando financeiramente e, então, comprei a primeira. Depois me apaixonei. Foi aquele encanto”, lembra.

Auxiliar veterinária, tosadora profissional e mãe de três filhos, Priscila investiu mais de R$ 20 mil em sua coleção. No enxoval, não faltam fraldas, laços, mamadeiras, roupinhas de inverno, sapatinhos combinando e berço com luminária. “Bebê reborn é igual a iPhone, só tem quem pode. A cada vez que você compra, lança uma melhor. Tem as bebês que respiram, dormem, mamam e fazem xixi. Essas são o triplo do valor. Eu passo um ano, dois anos pagando uma”, destaca a colecionadora, que também é influenciadora digital.

No tempo livre, ela vai até o quarto que montou só para as bonecas, em sua residência em João Pessoa, para limpar e organizar o espaço. Segundo Priscila, as histórias que cria são versões do seu passado no interior, inspiradas em memórias da infância. Com bom humor, ela grava vídeos e compartilha situações cotidianas com seus mais de 18 mil seguidores, em seu perfil @chegueipriscilaa. Mesmo com a polêmica envolvendo a arte reborn, ela tem aproveitado o momento para gerar conteúdo, independentemente dos comentários. “Cada pessoa interpreta do seu jeito, mas o que importa para mim é que eu estou vivendo aquele momento com alegria”, pontua.

Ao contrário do que vem sendo divulgado na imprensa e nas redes sociais — como se houvesse um surto coletivo de mulheres acreditando que bonecas são bebês de verdade, Priscila tem plena consciência do que está fazendo, e faz questão de deixar isso claro. “É uma brincadeira, não passa de um faz de conta”, reforça. Ela já viu muita gente se aproveitar da polêmica para ganhar visibilidade, como o caso de uma mulher, em Santa Catarina, que tentou vacinar um bebê reborn em uma Unidade Básica de Saúde (UBS). “Minha gente, são pessoas lúcidas que sabem o que estão fazendo”, observa. Porém, com a exposição nas redes, também vieram os julgamentos, muitos deles carregados de preconceito, com os quais prefere lidar sempre com bom humor. “Essas mesmas pessoas que me criticam logo se tornam meus fãs”, brinca. E, quando alguém tenta deslegitimar sua escolha, a resposta vem na lata, como ela mesma diz: “Se os homens colecionam carros, camisas de futebol, perfumes e até armas, por que eu não posso colecionar bonecas?”.

Produtos de um tempo em que tudo dever virar like

A ideia de que mulheres adultas estariam tratando bonecas como bebês tornou-se viral. Todos os dias, histórias inusitadas são replicadas em massa nas redes sociais e alimentam os noticiários, quase sempre com tom de piada e indignação. Mas, para quem estuda o comportamento humano, esse tsunami de reborns revela uma questão bem mais profunda: a nossa postura para com a sociedade. Para a psicóloga Juliana Beco, muitos dos vídeos e manchetes que viralizam são, na verdade, narrativas criadas para entreter ou engajar. “O probelma não existe enquanto vivência, mas sim como narrativa digital para entretenimento”, explica.

Segundo Juliana, esse fenômeno não nasceu de um comportamento coletivo espontâneo, mas de conteúdos estrategicamente compartilhados. O resultado é uma falsa sensação de que há algo errado acontecendo em larga escala, quando na prática são casos isolados que ganharam uma projeção desproporcional. “Não era tendência, mas agora, com a narrativa criativa viralizada, o comportamento social passa a se voltar para isso. A viralização do bebê reborn não vem da vivência humana no cotidiano, mas se torna isso a partir dessa narrativa puramente digital”, analisa Juliana.

À luz da lei

No campo jurídico, o advogado constitucionalista Henrique Toscano reforça que os casos mais polêmicos, como pedidos de guarda ou pensão, não têm nenhum respaldo legal. “Não há como enquadrar institutos do direito de família aos bonecos hiper-realistas. Isso seria contrariar a própria lei”. Segundo ele, por não serem seres vivos, os reborns devem ser legalmente tratados como bens materiais, mesmo que tenham alto valor afetivo. Dessa forma, em casos de divórcio, o juiz pode decidir sobre a posse da boneca como decidiria sobre um carro ou qualquer outro item de valor. Em relação aos animais de estimação a discussão é bem diferente. Embora os pets também sejam considerados bens móveis pela legislação, o fato de serem seres vivos que demandam cuidados tem motivado interpretações mais sensíveis por parte da Justiça.

Henrique explica, ainda, que pedidos como atendimento médico para a boneca ou assento preferencial em locais públicos podem, sim, levar à judicialização do caso para avaliação da sanidade da parte envolvida. “Uma coisa é ter um hobby. Outra é se imaginar com uma criança, não com um boneco. Aí a gente entra em um campo que pode envolver crise dissociativa ou transtorno psiquiátrico”, salienta. Para o advogado, esses episódios são extremos e, em muitos casos, motivados pelo desejo de likes. “Até hoje, nosso escritório, presente em 11 estados, não atendeu nenhum caso de mãe reborn”, ressantando que qualquer advogado que leve esse tipo de demanda à Justiça está sujeito à aplicação de multa por litigância de má-fé, tendo em vista que se trata de um pedido “juridicamente inexequível”.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 1º de junho de 2025.