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Violência de gênero

Cresce número de ataques virtuais

publicado: 27/05/2024 10h06, última modificação: 27/05/2024 10h06
Pesquisa mostrou que vítimas desenvolvem medo de sair de casa, ansiedade e sensação constante de perseguição
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Assédio e perseguição são os tipos mais comuns de violência virtual
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Fotos: Leonardo Ariel
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por Emerson da Cunha*

As mulheres são um dos grupos mais vulneráveis à violência. Seja no trabalho, em ambientes de estudo ou até mesmo dentro da própria casa, são muitos os relatos de agressões físicas e psicológicas. Nos últimos anos, passou a ser constante também os ataques de gênero pela internet. A jornalista Jô Pontes é integrante do Cunhã Coletivo Feminista e, entre outras ações, esteve envolvida, durante a pandemia de Covid-19, em ações formativas sobre boas práticas de comunicação para o ativismo das mulheres. Mas, entre uma aula e outra, o grupo foi percebendo algo importante: estavam crescendo de forma latente os casos de violência de gênero, como perseguição. Foi a partir de então que o coletivo percebeu a necessidade de aprofundar a atuação sobre o campo da violência de gênero no ambiente digital.

“A gente começou a direcionar essa formação para a questão de como a gente pode enfrentar situações de violência virtual na rede e a aprofundar mesmo essa discussão. Há muitas mulheres que nos procuram, que mandam mensagem até pelas nossas redes sociais mesmo. A gente orienta, informa sobre as delegacias da mulher, passa algumas dicas também de como você pode estar se protegendo também”, explica Jô Pontes.

Durante a pandemia, o Instituto Avon e a Decode realizaram uma pesquisa com o objetivo de investigar a temática da violência contra meninas e mulheres na internet, divulgada na publicação “Muito Além do Cyberbullying – A Violência Real do Mundo Virtual”. Segundo o estudo, à época da pandemia, aumentaram os casos de assédio virtual (28% a 38%) e de perseguição (de 23% a 32%) - também conhecida como stalking.

As principais consequências à vida das vítimas de violência virtual na pandemia: medo de sair de casa (35%), exclusão de contas em redes sociais (21%), desespero em meio à situação (20%), ansiedade com ligações e notificações (12%), indignação com parceiros (8%) e sensação de constante perseguição (4%). Mais de 30% relataram efeitos psicológicos sérios (como adoecimento psíquico, isolamento social e pensamentos suicidas).

SAIBA MAIS
Formas de violência de gênero na internet:
- Censura, como casos em que as plataformas digitais censuram conteúdos políticos de mulheres nas redes, ou quando acontece um ataque massivo contra uma determinada mulher nas redes;
- Ofensa ou incitação ao ódio ou ao crime, ou seja, incitar que outras pessoas ajam de forma violenta contra a mulher; ameaças de violência física;
- Stalking, ou perseguição;
- Impersonation, quando alguém cria um perfil falso de uma mulher com exposição de conteúdos íntimos ou com algum comportamento alheio ou criminoso;
- Exposição de dados pessoais; utilização indevida da imagem;
- Disseminação não consentida de imagens íntimas, que pode envolver ou não algum tipo de extorsão ou ameaça; Invasão ou hacking; Ataque coordenado.

Fonte: Relatório “Violências contra Mulher na Internet: Diagnóstico, Soluções e Desafios” (2017)

Crime na internet é extensão do que acontece no “mundo real”

Especialistas explicam que não cabe diferenciação entre o que acontece on-line — nas redes sociais e plataformas digitais — e o que acontece off-line — de forma física, presencial. A violência contra as mulheres nos ambientes digitais pode ser uma extensão da violência que já acontece presencialmente ou trazer para o mundo físico as consequências daquilo que ocorre on-line.

"Violência de gênero amparada pela Lei no 11.340 se estende ao campo digital e pode ter conotação afetiva"
- Sileide Azevedo

Em termos de legislação, nos casos em que os agressores são pessoas da própria convivência familiar ou doméstica da vítima, o conceito de “doméstico” também pode ser ampliado para as relações interpessoais e comunitárias nos próprios ambientes digitais e podem ser lidas a partir da Lei Maria da Penha.

“Essa violência de gênero, amparada pela Lei no 11.340, se estende ao ambiente digital, se houver essa relação de afeto, essa relação com essa conotação afetiva. Não é uma situação, por exemplo, contra uma mulher sem essa conotação de afetividade. Por exemplo, alguém que identifica os dados de uma mulher e começa a chantagear, sem essa relação afetiva”, explica a delegada Sileide Azevedo, coordenadora das Delegacias Especializadas de Atenção à Mulher (Deams) da Paraíba.

No caso da própria violência, as plataformas on-line podem ser ferramentas usadas junto com o próprio exercício da violência em âmbito físico. Mas também mesmo aquilo que se fecha aos ambientes virtuais tem consequências diretas na vida da mulher, seja em termos materiais ou psicológicos. Alguém pode perguntar: como é que pode ter uma violência física no mundo on-line se a pessoa não está tocando? “Há a incitação da violência contra aquela mulher”, esclarece Mabel Dias, jornalista, associada ao Coletivo Intervozes e doutoranda em Comunicação pela UFPE.

“O agressor expõe informação pessoal da menina, foto, coloca telefone, informações pessoais, o que chamam de doxxing. Tem o racismo, o stalking, o assédio, ataques em massa, abuso sexual baseado em imagem, então são todas essas violências que podem acontecer no ambiente virtual e podem ser estimuladas e levar ao suicídio da mulher, da adolescente ou gerar o ambiente físico para que isso aconteça de fato. Ao ponto de as pessoas terem que mudar de residência, sair do trabalho, mudar telefone”, aponta Mabel.

Dinâmica das redes

Segundo a pesquisadora Mabel Dias, as próprias ambiências digitais, em especial, trazem características que potencializam a violência de gênero. A dinâmica de envolvimento e interações, sem precisar especificamente da qualidade do conteúdo, é uma das bases da arquitetura da rede.

“Hoje em dia, todos nós somos produtores de conteúdo. Produz conteúdo desde aquela pessoa que tem consciência, senso crítico, ética, quanto aquela que não tem. Existe uma mínima filtragem daquilo. Há um perfil de um masculinista [estudado na pesquisa] que tem discursos misóginos, diz que mulher com piercing em partes íntimas é puta. Isso gera repúdio, gera violência contra a mulher. O algoritmo não consegue identificar o discurso preconceituoso, que pode gerar violência. A arquitetura das plataformas digitais pode beneficiar, fazer com que essa violência venha a acontecer”, explica Dias.

A promotora de Justiça da Mulher do Ministério Público da Paraíba (MPPB), Rosane Araújo, acompanha a fala de Mabel: “O ambiente digital e a existência das redes sociais só aumentam ainda mais o número dessas violências, pela facilitação e pelo alcance ilimitado desse dano. Ainda que posteriormente seja determinada a retirada dessas imagens das redes sociais, o dano já está instalado. A violência de gênero nas redes sociais é mais danosa, ela é de alcance global, e o dano emocional para a vítima é imensurável”, reforça.

Responsabilizar as plataformas é desafio para a Justiça do país

Outro problema sinalizado pela pesquisadora é a falta de regulação das plataformas digitais, enterrada de vez recentemente com o recuo na legislação dentro do Parlamento federal.

“As plataformas digitais lucram com esse discurso de ódio, com o ‘quanto mais violência, melhor’. Elas dizem combater, mas muitas vezes não conseguem nem detectar os atos. Muitas demitiram pessoas que faziam moderação de conteúdo. O algoritmo não consegue filtrar. Esse discurso vai passando para as pessoas, principalmente adolescentes”, explica Mabel Dias. A pesquisadora traz uma possível solução:

“Uma principal questão que a gente poderia ter é a aprovação da Lei de Combate à Desinformação, o PL no 2630, que está parada no Congresso, e houve uma grande mobilização das plataformas digitais para que ele não fosse aprovado. A partir do momento em que houvesse uma regulação das plataformas, isso seria solucionado”, defende.

“Obviamente as redes sociais têm responsabilidade. A dificuldade é, por serem multinacionais, saber quem é o dono, juridicamente falando quem responde, onde responde. Elas deveriam ser o primeiro filtro, de não permitir tipos de divulgação, propagar discurso de ódio, de intolerância, de desrespeito, de violência de gênero, mas o discurso de ódio virou mercadoria. Tem um segmento que gosta disso, e as redes sociais, como empresa, têm interesse econômico. Se não fizerem o filtro, o devido controle, devem ser responsabilizadas também pelo dano moral causado a essa vítima”, completa a promotora Rosane Araújo.

Plataformas digitais lucram com discurso de ódio, apesar da alegação de combate a condutas ilegais

Como denunciar?

“A atribuição desses casos é da Delegacia da Mulher, nós usamos a expertise e fazemos trabalho com o apoio da Delegacia de Crimes Cibernéticos, auxiliando por vezes, nos trazendo encaminhamentos que podem nos auxiliar nessa investigação para identificar o autor. Às vezes, são contas que as pessoas usam fora do país e a gente tem que identificar o IP dessa máquina. É bem delicado”, explica a delegada Sileide Azevedo.

Nesses casos, as dicas da delegada são salvar o perfil, para tentar identificar o autor, printar e armazenar as conversas, comprovantes de transferência bancária, toda a documentação relacionada, que ela preserve essas informações e que leve à Delegacia da Mulher mais próxima, com o equipamento que ela estava usando nessa comunicação. No caso de cidades sem delegacias da mulher, pode-se buscar a delegacia municipal.

A ativista Jô Pontes aponta alguns cuidados: em sites e aplicativos de relacionamento, ter o cuidado de não enviar fotos mais íntimas, não deixar dados e endereço publicamente quando for fazer fotografia, também tomar cuidado de não colocar a localização de onde está. Se for a algum encontro com alguém que conheceu na internet, sempre compartilhar o contato da pessoa com uma rede de apoio com pessoas de confiança para se prevenir para evitar qualquer situação de violência.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 26 de maio de 2024.