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lei dos espigões

Preservação supera especulação

publicado: 27/05/2024 09h51, última modificação: 27/05/2024 09h51
Após anos de questionamentos diversos, hoje a legislação paraibana é quase um consenso entre os paraibanos
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Área de proteção é traçada a partir da “preamar de sizígia” - faixa de areia alcançada pela maré mais alta -, e se estende por 500 metros em direção ao continente. Nos primeiros 150 metros, nada pode ser construído | Foto: Roberto Guedes

por Priscila Peres*

Qual é a relação entre as praias de João Pessoa e de Balneário Camboriú, em Santa Catarina? Nenhuma, e ainda bem. Enquanto a capital paraibana desponta como exemplo ao limitar a construção de prédios altos em sua orla, o litoral catarinense representa o extremo oposto nesse aspecto, com a presença de espigões sombreando suas praias. Por aqui, existem duas leis complementares em vigor, uma estadual e outra municipal, que limitam a altura máxima das construções como forma de proteger a área da especulação imobiliária.

Mas o desafio é grande diante da verticalização que redesenha a cidade pouco a pouco. “João Pessoa é naturalmente bela. Nossa obrigação é simplesmente preservá-la como ela é”, defende o arquiteto e urbanista Ricardo Vidal, presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo da Paraíba (CAU-PB).

Na visão do especialista, se em Camboriú houvesse uma lei semelhante à de João Pessoa, talvez não fosse necessária uma intervenção tão grande, de engordamento da faixa de areia, para que a orla voltasse a ser convidativa. “Vejo aquela cidade como um exemplo a não ser seguido. Afinal, não houve por lá o cuidado que temos aqui da limitação de altura dos edifícios e, tardiamente, a solução encontrada foi alargar a faixa de areia”, reflete Ricardo.

Por aqui, apesar das discordâncias especulativas sugerirem um impacto negativo no desenvolvimento local, ele considera a legislação um importante instrumento de preservação do patrimônio natural da cidade. “Ao contrário disso, nossa orla é conhecida nacionalmente por essa característica, que a destaca das demais grandes cidades litorâneas, atraindo turistas e novos moradores”, complementa o urbanista.

Leis

Antes de tudo, é preciso entender o que significam essas leis que restringem a altura máxima dos prédios na orla pessoense. A principal delas, mais generalista, foi promulgada em 1989, como parte da Constituição do Estado (Artigo 229), e vale para todo o território paraibano. Já a municipal, de 1990, integra a Lei Orgânica do Município de João Pessoa e tem um caráter regulamentador, como bem explica Vital José Pessoa Madruga Filho, vice-presidente da Comissão de Direito Ambiental da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional da Paraíba (OAB-PB). “A lei municipal traz um detalhamento maior acerca dos níveis de permissibilidade de construção, uma especificidade de cunho urbanístico e de interesse local; enquanto a estadual apresenta um teor mais generalista”.

Embora a legislação estadual se sobressaia à municipal, ambas compartilham o mesmo objetivo: preservar a zona costeira de João Pessoa, área reconhecida como patrimônio ambiental, cultural, paisagístico, histórico e ecológico da Paraíba. “Basicamente, elas se harmonizam”, pontua o advogado. Porém, nada disso seria possível hoje sem a atuação contundente de entidades como a Associação Paraibana dos Amigos da Natureza (Apan) durante o período de redemocratização do país. De acordo com Ronilton Lins, membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB-PB, a Apan protagonizou essa luta para que essas normas fossem inseridas no texto constitucional do estado. E, se não fosse por ela, a Paraíba estaria hoje como qualquer outro estado da federação, com a permissão de espigões na orla. “Essas ideias ambientais não surgiram do nada. O que houve foi uma gradativa mudança de sensibilidade em relação à preservação do meio ambiente, intensificada durante a abertura política. E esse movimento contra os espigões fez parte dessa estratégia de mobilização social”, destaca Ronilton.

Verticalização

Segundo o arquiteto e urbanista Ricardo Vidal, a legislação utiliza uma tangente que permite uma maior verticalização das construções à medida que os terrenos se distanciam do mar. “Se hoje a legislação fosse flexibilizada ou derrubada, em poucos anos, veríamos uma forte verticalização da orla. Esse ponto do gabarito é o que mais difere João Pessoa de outras cidades”, complementa. A área de proteção é traçada a partir da “preamar de sizígia” – a faixa de areia alcançada pela maré mais alta na orla – e se estende por 500 metros em direção ao continente.

Essas ideias ambientais não surgiram do nada. Esse movimento contra os espigões fez parte da estratégia de mobilização social
- Romilton Lins

Nos primeiros 150 metros, nada pode ser construído, sendo uma zona de proteção total. Depois dela é que vem a primeira quadra, onde podem ser erguidos prédios de até 12,95 metros de altura, o equivalente a construções de três andares. Já na outra ponta dessa linha imaginária, o gabarito permitido é de 35 metros, com sete faixas de progressão entre a primeira e a última.

A lei estadual ainda estabelece como “crime de responsabilidade” a concessão de licença para construção ou reforma de prédios na orla que estiverem em desacordo com essas regras, sendo o “Plano Diretor” o responsável por disciplinar essas construções. Por se tratar de um instrumento de planejamento urbano, o Plano Diretor Estratégico (PDE) de João Pessoa tem justamente essa função, segundo o advogado Vital Filho. A altura máxima é calculada multiplicando-se a distância entre a linha da maré e o início do terreno pelo índice de aproveitamento do gabarito, que é 0,0442.

Se o imóvel não obedecer à norma, obra é barrada

Mas o que acontece se um prédio estiver acima da altura permitida? Quando um empreendimento começa a ser construído na orla pessoense, a construtora responsável precisa obter dois documentos fundamentais: o alvará de construção, para iniciar a obra; e o Habite-se, ao fim dela, atestando que o imóvel está de acordo com as normas estabelecidas pelo município. É nesse momento que se verifica se houve algum tipo de extrapolação, inclusive no gabarito de altura.

Vital José Pessoa Madruga Filho, vice-presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB-PB, explica que há duas soluções possíveis diante desse quadro: a supressão da altura excedente ou a aplicação de compensação ambiental. Porém, como em alguns casos essa adequação poderia causar prejuízos estruturais à obra, por já estar edificada, tem-se buscado acordos para mitigar os danos ao meio ambiente e evitar possíveis riscos aos futuros moradores desses prédios. “Agora, o que está sendo questionado é se realmente essa compensação é adequada, se realmente ela compensa o dano ao meio ambiente”.

Apesar da penalização, o Ministério Público da Paraíba (MPPB) tem levantado um debate importante sobre a dosimetria das multas aplicadas às construtoras. Segundo Vital José, muitas vezes, a compensação é fixada em valores muito aquém da gravidade do caso. Além disso, por serem irrisórias frente ao problema, essas multas acabam se tornando, também, uma saída oportuna para a flexibilização da legislação. “Há um procedimento em curso no MP que, inclusive, já descambou para uma ação civil pública, sobre a existência de vários prédios na orla de João Pessoa que transgrediram a norma de restrição do gabarito de altura”, complementa Vital. Há pelo menos seis construtoras envolvidas.

A Comissão de Direito Ambiental da OAB-PB tem acompanhado o caso e contribuído com o órgão na construção desse importante debate.

Recentemente, a Câmara de João Pessoa propôs uma pequena alteração à legislação municipal: em vez de 1,30 m, as platibandas dos prédios (as muretas de proteção colocadas na parte superior das edificações) poderiam medir 1,50 m. A emenda, entretanto, foi vetada pelo prefeito Cícero Lucena justamente por alterar a restrição de altura máxima. Seria um passo em direção à flexibilização das regras, um caminho equivocado e sem volta para a verticalização da orla, com graves consequências para a qualidade de vida da população.

 É o que aponta Bráulio Almeida Santos, professor do Departamento de Sistemática e Ecologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e coordenador do Laboratório de Ecologia Aplicada e Conservação. “A lista de impactos ambientais é extensa.”

Com os espigões, haveria o sombreamento da praia e da vegetação de restinga, que mantém o ambiente “de praia” em equilíbrio. Sem ela, o vento sopraria toda a areia para o calçadão, impactando a vida dos animais. “Tanto os animais que vivem enterrados na areia, como crustáceos e moluscos, como aqueles que vivem na superfície, como aves, répteis e mamíferos, seriam afetados”, completa Bráulio. A verticalização também aumentaria a densidade populacional na região, resultando em mais poluição hídrica e atmosférica.

Para evitar que um futuro tão adverso se torne realidade, Bráulio acredita que todas as cidades litorâneas precisam de um gerenciamento costeiro integrado baseado em dados técnicos e científicos. E o limite da altura das edificações seria um pilar central nessa questão. Diante disso, poderia ocorrer flexibilização da legislação sem comprometer o meio ambiente? Para Denison Ferreira, porta-voz da frente de Oceanos do Greenpeace Brasil, João Pessoa precisa seguir por um caminho diferente. “Precisamos reforçar e melhorar nossas legislações, investir e ampliar o quadro de analistas, técnicos e fiscalizadores ambientais e criar políticas públicas eficientes que cuidem das pessoas, da natureza e que nos preparem para lidar com as mudanças climáticas”, crava.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 26 de maio de 2024.