por Joel Cavalcanti*
A experiência humana da doença é cruel. A impossibilidade de tratá-la provoca pesquisas, protestos, oração e gritos. É dessa verbalidade entre a fé e a ciência que é feita a dramaturgia de Cura, espetáculo da Companhia de Dança Deborah Colker com apresentações hoje e amanhã, sempre às 20h30, no Teatro A Pedra do Reino, em João Pessoa. Em entrevista exclusiva ao jornal A União, a bailarina e coreógrafa carioca conta sobre seu processo criativo da obra que une seu neto, um orixá do candomblé, Stephen Hawking, Jesus Cristo e Leonardo Cohen.
Cura apresenta um prólogo narrado por Theo Colker, neto da artista, que convive com epidermólise bolhosa distrófica recessiva, doença rara caracterizada pela formação de bolhas na pele e mucosa. A montagem é, de certa forma, sobre o que Theo causou em sua avó. É ele quem narra a história do mito iorubá de Obaluaê, orixá da doença e da cura, que, segundo o candomblé, é um menino que nasceu coberto de feridas, tendo sido adotado por Iemanjá. Para proteger sua pele, ele anda coberto com uma estrutura de palha que lhe cobre todo o corpo. Esse momento está representado no palco pelas estruturas de sete metros de altura coberta por fitas e crochê que se movimentam com a intervenção dos bailarinos.
Em cena, os dançarinos cantam em hebraico e em dialetos africanos. Há ainda uma música de Carlinhos Brown e Leonard Cohen. A súplica “Al na El na refana la”, um mantra que significa “Deus, por favor, cure-a”, é entoado lembrando o primeiro pedido por restabelecimento de saúde já realizado. “Esse é o espetáculo mais verbal que já criei. A gente nunca havia cantado. Em Cura, eu ia precisar das palavras, de histórias, de letras, frases e salmos”, destaca Deborah Colker. Ela também vai nas letras da ciência projetando elementos químicos e dá movimento corporal à composição do DNA. “Eu precisei das palavras, precisei ser verbal”, justifica ela.
Deborah precisou criar também em Cura uma saída artística criativa para dançar a célula, a imobilidade e o descontrole motor para a coreografia – uma antítese da dança. “Como a gente faz para dançar a ausência de movimento? Eu quis tratar disso: como um corpo fica aprisionado dentro dele mesmo? Foram muitas pesquisas e sempre colocando a companhia nesse mergulho”, conta a coreógrafa, que quis tratar das doenças do ponto de vista não apenas físico, mas também emocional, intelectual e espiritual. “A maior surra foi como trazer a doença com a discriminação. A doença não é uma anormalidade: é algo diferente. Eu me debrucei sobre algo delicado e fui buscar um caminho novo”, analisa.
Judia e com uma religiosidade trançada com pragmatismo, Deborah Colker conta com a dramaturgia do rabino Nilton Bonder para a criação do enredo que se coaduna com a ideia de que todo mundo precisa ter o direito de pedir por cura e que a súplica é por si só terapêutica. É quando em Cura, os bailarinos vão criando um grande muro formado por caixas, sobrepostas uma a uma, como uma tentativa de criar uma conexão da terra com o céu. Ela define a obra como sendo “um espetáculo em carne viva”, no qual a ciência e a religião estão apaziguadas.
Deborah Colker é psicóloga, pianista, primeira mulher a assumir um cargo de direção do Cirque Du Soleil e criou a abertura das Olimpíadas de 2016, no Rio de Janeiro. Sua companhia tem 27 anos e acumula 13 espetáculos em seu repertório, visto por mais de 3 milhões de espectadores em 32 países.
A coreógrafa realiza trabalhos marcados pelas sugestões que a arquitetura oferece à construção da linguagem e que incluem um intenso estudo dos movimentos nos planos horizontais e verticais, além das perspectivas de profundidade e volume, que sempre desafiam os limites físicos dos bailarinos. Cura chega em um momento em que mais de 613 mil brasileiros morreram por causa da covid-19 e essa analogia possui pontos de aproximação e afastamento com o espetáculo.
“Quando a pandemia veio foi algo assustador pela coincidência. Mas hoje em dia eu percebo como cada um se conecta com a sua dor, sua ausência, sua luta e sua perda. É inevitável essa associação porque o espetáculo fala sobre vulnerabilidade”, compara Deborah, que trata na apresentação de hoje sobre a cura para qual não há cura, nem vacina. O próprio significado do que seja cura é algo bastante singular para ela.
Foi durante uma turnê pelo Nordeste, em 2017, que ela, pensando em Stephen Hawking, cunhou a frase: “Ele encontrou a cura para o que não tem cura”. No ato final do espetáculo é encenada uma grande dança festiva e alegre representando a grande cura, que seria a morte. “Eu tenho certeza que Stephen Hawking encontrou a cura para a doença dele, que é incurável. A cabeça dele permaneceu livre, criativa e iluminada. Já a existência da morte como a grande cura é algo que a gente vai aprendendo que a morte faz parte da vida. Se relacionar com a morte como algo cíclico é muito importante. A morte é uma liberdade”.
Hoje com 12 anos, Theo Colker pratica karatê e mudou recentemente de faixa na categoria dele, ultrapassando as suas barreiras e encontrando a cura para o que não tem cura. “Cada faixa é um processo de cura. A doença dele ainda não tem cura. Ele traz o caminho da cura e está encontrando a resistência e a guerrilha dele”, conclui Deborah Colker.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 24 de novembro de 2021