Com o advento da inteligência artificial (IA), novos tipos de crimes cibernéticos vêm surgindo na sociedade. Um deles é o chamado deepfake sexual (ou pornografia deepfake). De acordo com uma pesquisa divulgada, neste mês, pela organização não governamental (ONG) SaferNet — que promove a defesa dos direitos humanos na internet —, a Paraíba é, ao lado do Rio de Janeiro, o segundo estado brasileiro onde mais houve notícias de ocorrências desse crime em escolas.
As deepfakes sexuais são imagens de nudez ou de cunho sexual, criadas com recursos de inteligência artificial, sem o consentimento das pessoas representadas. Isso caracteriza uma clara violação da privacidade e da dignidade dos alvos, já que esses conteúdos podem ser fotos ou vídeos retratando cenas sexuais nunca ocorridas.
O crime incorre, portanto, na criação não consentida de imagens falseadas, aliada à divulgação desse material, o que gera não apenas constrangimento, como também diversas outras consequências sociais, psicológicas e até físicas. Crianças e adolescentes não são apenas vítimas, mas, em alguns casos, são quem comete esses crimes, inclusive no contexto escolar.
De acordo com o levantamento da SaferNet, o primeiro episódio de pornografia deepfake identificado no Brasil ocorreu em 2023, quando tecnologias de produção de imagens por meio de IA evoluíram notavelmente e tornaram-se mais acessíveis aos usuários. Ao identificar, daquele ano até 2025, 16 casos de deepfakes sexuais registrados em escolas do país e repercutidos na imprensa, com pelo menos 70 vítimas, a ONG elaborou um ranking que coloca a Paraíba na vice-liderança, com dois episódios noticiados — o mesmo índice do Rio de Janeiro —, atrás apenas de São Paulo, que somou seis ocorrências veiculadas no período. A lista engloba mais sete estados, cada um com um único registro na mídia: Alagoas, Bahia, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Pernambuco e Rio Grande do Sul.
Diretora de projetos especiais da SaferNet, Juliana Cunha explicou a necessidade de um olhar atento sobre essas novas formas de crime e como um mapeamento nacional pode contribuir para soluções conjuntas contra o problema. “Sabemos que pode ser muito difícil falar sobre isso, mas a voz das vítimas é essencial para dimensionar o problema e ajudar outros adolescentes no futuro. Com a pesquisa, queremos elaborar um relatório inédito no Brasil sobre o tema e incentivar autoridades públicas a construir uma resposta a essa demanda, com soluções que façam diferença no dia a dia dos adolescentes”, analisou Juliana.
Vítimas podem contar com delegacia especializada e o Conselho Tutelar
Segundo o delegado João Ricardo, da Delegacia Especializada em Crimes Cibernéticos (Decc) da Polícia Civil da Paraíba (PCPB), apesar de os casos de pornografia deepfake ainda não serem tão rotineiros, representam um desafio crescente, visto que é cada vez mais fácil produzir conteúdos audiovisuais de qualquer ordem, inclusive os criminosos, mediante a inteligência artificial.
“Tivemos um caso no ano passado, quando uma professora foi vítima disso — fotografias que pareciam muito reais, mas com deepfake. Conseguimos identificar os adolescentes que fizeram essa montagem, divulgada em duas escolas e causando muitos transtornos psicológicos à vítima”, lembrou o delegado. O titular da Decc detalhou, ainda, que Boletins de Ocorrências de crimes desse tipo podem ser feitos em qualquer delegacia policial do estado, para que se possa, posteriormente, ser iniciada a investigação sobre o caso denunciado.
Conselheira tutelar na região de Mangabeira, na Zona Sul de João Pessoa, Verônica Oliveira também começa a se deparar com denúncias desse gênero. Em sua avaliação, o Conselho Tutelar precisa estar atento aos novos métodos de delitos, para poder conseguir garantir a proteção e a conscientização dos jovens de maneira mais precisa, diante do uso criminoso das ferramentas modernas da internet.
“Após investigar, a delegacia pode encaminhar o caso para o Conselho Tutelar, para podermos aplicar as medidas de proteção, em caso de vítimas menores de idade. Encaminhamos, ainda, uma notícia de fato para o Ministério Público, para que se constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da criança ou adolescente”, esclareceu Verônica.
Contextos
Na internet, a manipulação e a difusão de imagens de cunho sexual acaba manifestando-se como mais uma modalidade de crime digital. O compartilhamento não consensual de vídeos ou fotos criadas por IA acontece, muitas vezes, por vingança — após términos de relacionamento, por exemplo.
Também é comum haver casos motivados por uma perspectiva de monetização, quando até pessoas famosas tornam-se vítimas desse tipo de delito, numa espécie de exploração sexual digital.
Existe, ainda, a pornografia infantil via deepfake e os crimes de ódio, que podem ser realizados por meio de recursos de manipulação, com o objetivo de ameaçar ou subjugar pessoas.
Legislação brasileira já dispõe de dispositivos para punir a prática
Ainda não há uma lei que trate expressamente da pornografia criada a partir da adulteração de imagens de pessoas, com auxílio da inteligência artificial e sem o consentimento delas. De todo modo, a legislação brasileira possui dispositivos que já protegem a privacidade e a dignidade de vítimas desse tipo de delito digital.
A difusão de deepfakes sexuais pode, certamente, gerar difamações, injúrias e calúnias, crimes que são previstos no Código Penal Brasileiro, com sanções que variam de um mês a dois anos de reclusão. Além disso, a Lei no 13.718/2018 aborda a divulgação de sexo ou pornografia sem consentimento como crime, com pena de um a cinco anos de reclusão.
Quando as vítimas são menores de idade, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) protege quem é alvo desse gênero de delito. O artigo 240 do ECA, que trata de pornografia infantil, prevê pena de reclusão de quatro a oito anos, além de multa.
O artigo 241-C é ainda mais específico, sendo o dispositivo mais atento à pornografia deepfake. Ele proíbe a simulação de “participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica, por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual”. A pena varia de um a três anos de privação de liberdade, mais multa.
Quando o autor dessas manipulações de imagens é menor de idade, o ato acaba por ser enquadrado como infração análoga ao crime previsto no artigo 241-C do ECA, com sanções alternativas pelo mesmo período estipulado pelo estatuto.
“Teve um caso que acompanhamos de uma menina de 13 anos que estava conversando com um homem de outro estado, e ela foi vítima de um estupro virtual. Ele mandava vídeos horríveis dela. O encaminhamento, portanto, é sempre para a delegacia, porque é um caso policial”, destacou a conselheira tutelar Verônica Oliveira.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 19 de Outubro de 2025.