por Alexsandra Tavares*
Indígenas, quilombolas, ribeirinhos, sertanejos mostram a força da diversidade que molda a capital paraibana
Assim é a população pessoense, única por suas características particulares e ao mesmo plural, pela riqueza de sua diversidade cultural.
João Pessoa de várias faces, costumes e lutas diversas. A capital paraibana abriga pessoas que têm raízes nas mais diferentes tradições históricas, mas que comungam de um mesmo lugar ao sol. Sejam remanescentes de quilombolas, nativos da terra como os indígenas, de origem estrangeira como europeus ou vindos de regiões áridas do Estado como o sertanejo, esses povos dividem o mesmo território e, juntos, constituem a população pessoense.
Independentemente de sua ancestralidade, eles inseriram-se no mercado de trabalho, formaram novas gerações, mas ainda preservam parte de suas raízes. De acordo com o antropólogo e professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Estévão Palitót, a capital do Estado passou por transformações típicas de qualquer cidade, mas nos últimos 40 anos, essas mudanças passaram por um processo de aceleração.
Nesse período, João Pessoa deixou de ser uma pequena capital de província, com uma população homogênea do ponto de vista cultural, para ser mais cosmopolita. “Temos dois tipos claros de grupos sociais que vieram para cá nas últimas décadas. O primeiro veio do interior da Paraíba e de estados vizinhos. O outro grupo é proveniente das grandes cidades do país”, contou.
Segundo ele, porém, por mais que se fale em homogeneidade, toda cidade é marcada por heterogeneidade. E essa diversidade pode ser vertical, aquela que vem da distribuição das classes sociais, ou horizontal, marcada pelos diferentes grupos que aportam na cidade. E desde o surgimento da capital, podemos observar a presença dos indígenas, nativos desta terra, dos colonizadores europeus e dos negros, que surgem na condição de escravizados.
Atualmente, por causa das influências de outrora e da forma como ocorreu a organização e ocupação do espaço urbano, a cidade é efetivamente híbrida. Pessoas mais humildes, como as que vieram do interior, foram para bairros populares e áreas periféricas, ao passo que outros grupos se estabeleceram em espaços mais nobres. “E o maior desafio hoje é comportar os diferentes grupos sociais de forma a valorizar a todos, e reduzir as desigualdades, além de preservar e valorizar as identidades culturais”, destacou o antropólogo.
A pesquisadora, mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Campus I, e idealizadora do Museu do Patrimônio Vivo de João Pessoa, Marcela Muccillo, destacou que a diversidade cultural de João Pessoa também é formada por grupos sociais como as tradicionais comunidades de pescadores como a que existe na Praia da Penha e também pelas ribeirinhas, a exemplo da que está no Porto do Capim, no Varadouro.
Muitas vezes, elas passam despercebidas por grande parte da sociedade, mas estão vivas com toda sua história e tradição, repetindo hábitos antes exercidos por seus antepassados. Segundo ela, o fluxo de pessoas de diferentes culturas, que chegam à capital paraibana é contínuo. “João Pessoa, como toda capital, recebeu e ainda recebe um fluxo intenso de pessoas, motivadas, por diversas razões, a fixarem suas moradias na cidade”, destacou.
Do Sertão ao Litoral, a busca pela vida melhor
A busca por melhores oportunidades de trabalho, estudo e renda fez com que a família de Ubiracy Lacerda saísse do Sertão paraibano, especificamente do município de Bonito de Santa Fé, na década de 1983, para morar na capital do Estado. Juntamente com os pais, Severino e Josely Lacerda e seus 10 irmãos, a família se instalou no bairro de Jaguaribe.
Com apenas 14 anos de idade na época, Ubiracy teve que se adaptar à brusca mudança de vida. Esse é apenas um recorte de muitas outras famílias sertanejas que deixaram para trás sua terra natal em busca de crescimento pessoal e profissional em lugares distantes.
Mesmo longe de suas origens, a transição de uma região para outra não foi tão difícil para a família, porque contou com a acolhida dos moradores locais. “Tanto quem nasceu na capital como os sertanejos que encontrávamos na cidade nos recebeu muito bem e se tornaram nossos amigos”.
Ao longo dos anos, ele estudou e trabalhou ainda muito jovem, fez cursos e encontrou, em João Pessoa, Maria Aparecida, sertaneja do município de Aguiar, com se quem casou e teve um filho. Aos 53 anos de idade, Ubiracy conta que é funcionário público e, assim como seus 10 irmãos, conseguiu se estabelecer.
Mesmo residindo na capital há 36 anos, ele não esquece algumas referências do município onde nasceu, a exemplo da culinária. “Não esqueço o angu com galinha e o arroz vermelho de leite. Todo ano também visito meus parentes e amigos em Bonito de Santa Fé”, revelou.
Quer saber mais?
O Museu do Patrimônio Vivo de João Pessoa é um projeto da Organização Não Governamental (ONG) Coletivo Jaguá. O museu funciona como espaço de pesquisa, discussão, divulgação, formação e salvaguarda do matrimônio imaterial da Grande João Pessoa, a partir da formação de jovens agentes culturais comunitários, moradores de bairros tradicionais da cidade, responsáveis pelo inventário dos bens identificados. Através de pesquisas e parcerias com instituições como a UFPB, o Museu elaborou o museu Patrimônio Vivo da Grande João Pessoa - Catálogo de Bens Culturais Imateriais. A publicação, que pode ser encontrado em bibliotecas públicas, está na sua segunda edição.
Ribeirinhos colocam o tom do mangue em João Pessoa
Entre caranguejos e prédios altos, as comunidades ribeirinhas ajudaram a construir a identidade da capital
“Sou uma ribeirinha”. É dessa forma que Odenice de Oliveira Santos ou simplesmente Nicinha, 37 anos, se autodefine. Ela e seus dois filhos moram na comunidade do Porto do Capim, às margens do Rio Sanhauá, no Varadouro, cidade baixa de João Pessoa. Na paisagem bucólica predominam casas simples, a imponência do rio que é contornado pelo verde da Mata Atlântica, vegetação de restinga e manguezais.
Em pleno século XXI, tempo em que cada vez mais as pessoas se protegem da violência urbana e se isolam dentro de seus lares, Nicinha conta que os moradores da comunidade guardam hábitos típicos de alguns municípios do interior. As crianças brincam na rua até tarde e os vizinhos ainda se reúnem na calçada de casa para pôr a conversa em dia.
Dos antepassados, ainda estão vivas as tradições que passaram de geração em geração através dos personagens do folclore brasileiro como “comadre florzinha”, guardiã da floresta e do mangue, e o “Pai do Mangue”, responsável pelas marés. “Temos cultura, tradição e somos uma das poucas comunidades que respeita o meio ambiente, vivemos em harmonia com nossos defensores”, frisou Nicinha.
A fonte de renda dos moradores é basicamente a pesca artesanal, a cata de marisco e caranguejo na maré e as atividades desempenhadas no comércio local, nos estabelecimentos próximos ou dentro da própria comunidade.
A vida modesta às margens do Sanhauá, seus costumes e tradições são motivos de orgulho para Nicinha, que é casada há 18 anos com um ribeirinho, descendente de indígena. “Morar aqui é maravilhoso, é mesmo que está no céu. Tenho amigos indígenas, meu sogro era índio, eu acho maravilhoso essa mistura de povos, de crenças. Por isso o nosso Brasil é lindo”.
João Pessoa e a ancestralidade indígena
O Toré e o hábito de pintar o corpo com cores fortes. Pode parecer estranho para muitos pessoenses, mas para o morador do bairro do Cristo Redentor, o cacique Paulo Tabajara, essas ações fazem parte da tradição da família. O indígena afirma que, juntamente com outros integrantes da Nação Tabajara, luta para retornar ao seu antigo território no município de Conde. E enquanto esse momento não chega, mais de 1.000 indígenas estão espalhados pelos bairros da cidade.
O cacique é um dos líderes da Aldeia Vitória, que fica em Mata da Chica, no município de Conde. Uma das poucas que existe em terras paraibanas e que serve de moradia para uma pequena parcela dos tabajara. Paulo também afirma que representa os indígenas “desaldeados”, aqueles que não moram em aldeias e estão espalhados na Grande João Pessoa, Conde, Alhandra e Pitimbu. “Somos cerca de 1.500 indígenas e temos mais de 1.000 desaldeados. Estamos tentando levar o povo de volta ao seu território”.
Os antepassados de Paulo Tabajara viviam, no século XVII, no Sítio dos Caboclos, no Conde, e o resto do povo tabajara estava instalado em uma faixa de terra de 35 mil hectares, que vai do Rio Gramame até a Barra do Rio Abiaí, perto da divisa com Pitimbu. Com as histórias de lutas e conquistas ocorridas ao longo das décadas na capital paraibana, os indígenas foram expulsos de suas terras.
Salvas algumas exceções, como a Aldeia Vitória e a Aldeia Barra de Gramame (liderada pelo cacique Carlos), ambas no Conde, grande parte desse povo está longe do seu habitat natural. “Hoje lutamos junto ao Governo Federal para ter de volta 3.500 hectares no Conde. A área já foi reconhecida em 2010 pelos governos municipais e estaduais e o governo já tem a delimitação. Só falta a assinatura do presidente em Brasília”, contou o cacique Paulo.
Mesmo distantes das aldeias, os indígenas “desaldeados” costumam se reunir nas duas aldeias para relembrar suas tradições. Lá eles praticam o Toré, um ritual que reúne dança, luta e religião. Além disso, pescam, caçam e pintam os corpos como faziam seus avós e tataravós. “Só a nossa língua materna, o Tupi, fomos perdendo, mas estamos tentando recuperar”, confessou Paulo.
A filha do cacique, Jacy Tabajara, 29 anos, é coordenadora das Mulheres do Município de Conde. “Saímos de nossas terras por uma condição que nos foi imposta, mas tentamos guardar nossas raízes”, afirmou. Ao falar da diversidade de povos que estão em João Pessoa, Jacy reconhece a importância da capital paraibana para os tabajara. Segundo ela, foi essa cidade que mais acolheu a Nação que um dia dominou absoluto toda a região pessoense.
Quilombolas em luta
Os quilombos eram uma espécie de refúgio dos negros que fugiam da escravidão, se escondiam em uma área de mata e, se não fossem resgatados pelos seus “senhores”, instalavam verdadeiras comunidades. A história parece bem longe da nossa realidade, mas na verdade, podemos encontrar indícios desse passado na Comunidade Quilombola de Paratibe, que fica no Valentina Figueiredo, na capital paraibana.
O local, que existe há cerca de 200 anos, foi reconhecido como remanescente quilombola em 2006, pela Fundação Cultural Palmares. Entre os mais de 100 núcleos familiares da comunidade mora Joseane Pereira da Silva Santos (a Ana), 43 anos, integrante da Associação Negra de Paratibe.
Uma das lutas dos moradores quilombolas é passar para os jovens a importância da cultura negra, sua história de luta e origem. “A gente tenta explicar para eles porque eles vivem em um lugar diferenciado. Ao contrário dos bairros, aqui todo mundo tem algum parentesco. É irmão, primo, filho”, explicou Ana.
Com relação à adoção de costumes do povo negro que ainda resistem ao tempo estão o respeito aos mais velhos e práticas domésticas. Algumas donas de casa da Comunidade Quilombola de Paratibe seguem para o Rio do Padre para lavar roupa.
*publicada originalmente na edição impressa de 11 de agosto de 2019