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Filme de processo

publicado: 24/01/2023 10h35, última modificação: 24/01/2023 10h35
Longa da Paraíba que compete na Mostra Tiradentes (MG), ‘Cervejas no Escuro’ se concentra entre a ficção e o documentário com base na história de Princesa Isabel
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A partir do luto, longa de Tiago A. Neves mostra a protagonista (Edna Maria) fazendo um filme para costurar o passado histórico da cidade – ainda presa aos fantasmas que levaram à Revolta de Princesa –, à sua própria vida
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Um dos dois curtas em Tiradentes, ‘Conserva’, de Diego Benevides, conta a “estória-viagem” de um idoso (Fernando Teixeira) adepto de psicotrópicos
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O outro curta do estado na mostra é ‘Pedra Polida’, da diretora e atriz Danny Barbosa, que acompanha a trajetória de uma mulher trans da periferia
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por Joel Cavalcanti*

 

O longa-metragem Cervejas no Escuro tem início em um velório. A morte do marido de Edna a leva a sair com sua filha da zona rural para ir morar no Centro de Princesa Isabel, Alto Sertão paraibano. A partir do luto, ela decide fazer um filme que costura o passado histórico da cidade – ainda presa aos fantasmas que levaram à Revolta de Princesa –, à sua própria vida. O primeiro conflito que surge é de natureza familiar, uma vez que a personagem já idosa é questionada por não se dedicar às obrigações afetivas. O segundo conflito é o que diz respeito aos enfrentamentos que todo realizador de cinema tem no início de carreira: produzir um filme.

Classificado como uma produção experimental, Cervejas no Escuro – único longa paraibano presente na 26ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes (MG) – se centra em uma narrativa híbrida entre o documentário e a ficção. O que se vê na tela é o filme que a personagem Edna está realizando. Em alguns momentos, a câmera assume a perspectiva tradicional, em outros ela emula um making of. “Gosto de dizer que a pessoa pode escolher o que quer ver. Se ela quiser ver uma ficção, ela comprará a ideia de que se trata de uma ficção. Se ela quiser ver um documentário, ela também comprará a ideia de que é um documentário”, afirma o campinense Tiago A. Neves, diretor, produtor, roteirista e montador do filme.

A produção é o primeiro longa de ficção da carreira de Neves e o primeiro a ser rodado em Princesa Isabel, segundo o diretor. Cervejas no Escuro será exibido às 20h da próxima quinta-feira (dia 26), em Tiradentes (MG). A produção paraibana de 84 minutos está na Mostra Aurora, que se dedica a filmes feitos por realizadores com até três longas na carreira. Disputam o Troféu Barroco outras seis produções – do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Distrito Federal e Paraná. “A Mostra Tiradentes é muito importante para mim. Ela faz parte da minha formação, mesmo a distância, porque eu consumia muito o que saía de lá. Esse é o festival que renovo o pensamento do cinema contemporâneo brasileiro”, considera o realizador, que volta à Mostra depois de ter lançado lá o curta Remoinho, em 2020.

A obra de Tiago A. Neves tem por princípio revelar um tipo de cinema comunitário. O roteiro, que estava pronto há mais de 12 anos, foi aberto para que se incluíssem nuances presentes na vida real dos atores e atrizes sem experiência prévia no cinema, como personagens que perderam a esposa ou uma filha que se sente abandonada pela mãe. “A gente usa muito da vida deles dentro do filme para ter uma substância mais orgânica da biografia do personagem, que acaba sendo ele mesmo dentro de uma história de ficção”, exemplifica Neves. A obra resulta da própria vivência do cineasta, que sempre buscou no amadorismo e nas bordas temáticas e geográficas do fazer cinematográfico para as suas principais motivações criativas.
O título do filme faz referência aos encontros noturnos em um bar para discutir o roteiro e os processos de filmagem. Mas não só isso. O escuro guarda ainda relação com o luto da personagem de Edna, que promete reverter uma possível premiação que o filme venha a receber em cerveja para todos os envolvidos. “Nunca tinha tido contato com cinema, essa foi a primeira experiência. Uma iniciativa maravilhosa a qual deu a oportunidade de várias pessoas mostrarem a suas habilidades com encenação e de mostrar que temos pessoas capazes e talentosas em nossa cidade”, destaca a aposentada e uma das fundadoras da Cia. de Teatro Sound Clash, Edna Maria. Ela está ao lado de Sandro Mandu, Hérica Antas Diniz, Erick Marinho, Rinaldo José e do veterano Fernando Teixeira, em uma participação quase sentimental.

Depois de ter se radicado em Diadema (SP), por 15 anos, Tiago A. Neves está de volta à Paraíba. Aqui, ele tem a sua base familiar e criativa no Vale do Piancó. Essa vivência leva o cineasta a ter o tema de partidas e retornos com recorrência em seus curtas, que teve início em 2010, com Por um fio. Desde então, foram 13 produções apenas como diretor. O mais recente deles foi Incúria, premiado na edição de 2021 do Fest Aruanda (PB), com os troféus de Melhor Roteiro e Direção para Neves e Direção de Arte para Erick Marinho.

Apesar desse retrospecto, Neves ainda se considera um iniciante. “Essa é uma fase de iniciação para um patamar que vou descobrir agora. É uma indicação que tenho a esperança de me levar a outro lugar”, acredita.

Segundo a curadoria da Mostra Tiradentes, Cervejas no Escuro tem muito do imaginário sonhador da teledramaturgia que encontra o “filme de processo”. Fazendo cinema em “mutirão”, Neves se juntou a outros parceiros para criar o coletivo Cinema no Meio do Mundo (CIMM). Só neste momento, existem outros três longas do coletivo em fases diferentes de montagem. “Vejo uma luz com esse lançamento. Considero como uma iniciação para um outro lugar”, conclui Tiago A. Neves.

Curtas da PB em Tiradentes
Outras duas produções representam a Paraíba na 26ª edição da Mostra de Tiradentes. O curta Pedra Polida, de Danny Barbosa, está na Mostra Foco e trata sobre a trajetória de Safira, uma mulher trans da periferia. A personagem atua na área da saúde como técnica de enfermagem e almeja ascender a partir de uma graduação. Na sua rotina de trabalho depara-se com o passado na figura de um ex-namorado que a abandonou e, ironicamente, anos depois, busca ajuda no hospital em que ela trabalha. O filme será exibido hoje, às 22h30, e foi escolhido porque “organiza-se num encadeamento narrativo que opera no limite do realismo para fazer escapar os clichês em torno de vivências da travestilidade”, segundo a curadoria.

Na mesma Mostra Foco está Promessa de um Amor Selvagem, produção paulista que é protagonizada pelo ator paraibano Kelner Macêdo.

Já a Mostra Panorama será encerrada amanhã, às 16h, com Conserva, de Diego Benevides. O curta paraibano, em tom cômico, retoma a estética das imagens analógicas em movimento para contar a “estória-viagem” de um idoso adepto de psicotrópicos (Fernando Teixeira).

Tanto Pedra Polida quanto Conseva são frutos do Edital Margarida Cardoso, lançado pelo Governo do Estado, por meio da Secretaria de Estado da Cultura (Secult-PB).

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 24 de janeiro de 2023.