No início era terra, território e a vida toda ali. Depois vieram os europeus, as invasões, as sesmarias, enfim as propriedades privatizadas. Terra passou a ser mercadoria e poder, a ter donos e donas. O processo de retomada indígena na Paraíba - e no Brasil, na busca pelos seus territórios originários, não é pela propriedade da terra, mas está vinculado à própria forma de vida, à ideia de que tudo é um só, sem diferenças entre humanos e natureza. Nesse Dia dos Povos Indígenas, a pauta da demarcadação de terras está mais atual do que nunca, é como um rio difícil de navegar, como já diz o nosso nome, Parahyba.
Preservar o território também é uma forma de conseguir garantir os direitos das mulheres
- Aparecida Potiguara
Segundo o Censo 2022, são mais de 30 mil indígenas vivendo em território paraibano, correspondendo a quase 1% de toda a população do estado, com maior incidência nos municípios de Marcação e Baía da Traição, no Litoral. Atualmente, a Paraíba conta com três demarcações de Terras Indígenas (TI), todas do povo Potiguara: a TI Potiguara e a TI Jacaré de São Domingos, regularizadas, e a TI Potiguara de Monte-mor, em fase de declaração, todas entre as cidades de Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto. No total, são cerca de 30 hectares de território indígena na Paraíba.
No entanto, há ainda o povo Tabajara, histórico no estado, mas que tem lutado pela demarcação de seu território, entre as cidades de Alhandra, Conde e Pitimbu, Litoral Sul paraibano, há pelo menos 18 anos em processos judiciais e administrativos. Segundo o site da Funai, a demarcação dessas terras está em fase de “estudo”.
“A luta pela terra é a mãe de todas as lutas. A gente se identifica, a gente se reconhece onde está, porque a gente pertence a um território”, explica a liderança Jacy Tabajara, da Aldeia Nova Conquista Taquara, no Conde. “Não é que o território seja nosso, não é que aquela praia, aquele pedaço de chão é nosso. Pelo contrário. É nosso sentimento de que a gente pertence àquele lugar, a gente é dali. Nossos ancestrais são dali. A gente tem a missão de fazer justiça por todos que nos antecederam, que foram silenciados, mortos, e tudo isso gira em torno da principal pauta que é a de terra e território”, defende a liderança.
Demarcação
O último capítulo na demarcação de terras indígenas no estado aconteceu no dia 15 de fevereiro, com a publicação da Portaria nº 88, de 9 de fevereiro de 2024 da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que determinou a criação de um grupo de trabalho (GT) responsável por estudos para a demarcação da TI Tabajara, Litoral Sul do estado. O grupo inclui representações do Governo do Estado, da Prefeitura de João Pessoa, além de especialistas em indigenismo e um zootecnista.
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Leis e acordos internacionais reforçam o direito de grupos indígenas a ocupação de seu território. De acordo com o artigo 231 da Constituição Federal, “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
“É um grupo de trabalho que faz levantamentos e tenta entender toda a complexidade desse pedaço que a gente pleiteia para ser demarcado”, explica Jacy Tabajara, que acompanha o processo. “Questão de quem são os proprietários, que tipo de legalidade ou ilegalidade tem naquela propriedade. Os municípios onde o território está situado são riquíssimos na diversidade cultural”, explica a liderança indígena.
Segundo a portaria, o GT teria os prazos de 25 e 60 dias a partir da data de publicação para entregar, respectivamente, os estudos de campo e o relatório final. No entanto, segundo o defensor público Edson Julio de Andrade Filho, que atua na defesa do povo Tabajara no processo, o prazo deverá se estender. Isso porque, em dezembro do ano passado, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 14.701/2023, que estabelece o marco temporal para a demarcação de terras indígenas no Brasil.
Segundo o texto, a demarcação só pode acontecer em territórios ocupados ou em situação de conflito pelos povos indígenas no momento da promulgação da Constituição Federal de 1988. Essa é uma grande derrota para as lutas indigenistas, já que não reconhece o processo histórico de violência e expulsão dos territórios que passaram e ainda vêm passando.
Uma das riquezas que os indígenas conseguiram preservar foi a prática dos rituais, transmitidos a cada geração
“Esse grupo técnico foi criado para fazer esse trabalho de campo, analisar a ocupação não indígena. Eles já encerraram o trabalho de campo, mas o relatório final, que estava previsto para o final de junho, muito possivelmente vai ter que atrasar um pouco, porque a lei recentemente publicada - que inclusive teve veto da Presidência da República, mas que foi derrubado, antecipou o contraditório para essa fase. Por conta disso, ainda se está vendo qual o prazo para fazer as notificações para além daquelas que já foram feitas nas visitas técnicas, vai haver publicação de edital, então essa fase de contraditório vai ficar ampliada nesse momento atual”, explica o defensor público Edson Julio.
Vivência holística com a natureza
A relação orgânica e holística com o território é reconhecida como de fundamental importância para os povos indígenas, inclusive se relacionando com as lutas de segmentos específicos da população e das questões espirituais. “A luta de todas as lutas é a luta pela mãe terra”, salienta Paulinho Tabajara, liderança jovem, da Aldeia Nova Conquista Taquara, no Conde. “Hoje, o povo Tabajara vive um processo demarcatório pelo qual a gente mostra que está vivo, está lutando pelo nosso território ancestral, de onde foram retirados nossos avós. Muitos até foram assassinados para obrigar a expulsão do povo Tabajara de seu território. A juventude e as lideranças Tabajara estão nessa luta pela retomada da identidade, da cultura e da ancestralidade”, reforça o jovem.
Para Aparecida Potiguara, liderança indígena da Aldeia Forte, em Baía da Traição, a luta pelo território é fundamental para o protagonismo das mulheres. “A questão do meio ambiente, a revitalização dos nossos rios, da nossa fauna, das nossas florestas, as nascentes, reflorestamento, cuidar da terra, a questão territorial também é de grande importância. O índio sem terra, sem seu território, ele não é nada. A nossa grande luta é a de preservar nosso território, que é sagrado. Preservar o território também é uma forma de conseguir garantir os direitos das mulheres”, salienta Aparecida.
“Aqui, por sermos indígenas do Litoral Norte, sermos o único povo indígena do Brasil a permanecer no mesmo local desde o processo da colonização, infelizmente a gente acabou perdendo alguns costumes culturais, e tem muito esse impacto diretamente no sentido dos estereótipos”, explica Tamara Potiguara, liderança indígena da aldeia Alto do Tambá, Baía da Traição. “Mas uma das riquezas que nós temos ainda preservada é a questão da espiritualidade da memória dos rituais. É uma coisa que, ainda mesmo com todo esse processo histórico que foi travado, a gente conseguiu e consegue preservar e permanecer”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 19 de abril de 2024.