“Muitas vezes, a sociedade acredita só no indígena do passado, mas não acredita e não gosta daquele que é atualizado e articulado, que sabe questionar e buscar seus direitos. Por isso, a gente deve se fortalecer, enquanto movimento indígena, e não baixar a cabeça”. A declaração de Jaqueline Ciríaco, professora da língua tupi e comunicadora potiguara, ilustra o pensamento que guia os grupos nativos do Brasil, em suas reivindicações pela demarcação de territórios e preservação de identidades. A necessidade e a disposição para esse combate são celebradas, em todo o país, na data de hoje, considerado o Dia Nacional da Luta dos Povos Indígenas.
A data foi instituída em homenagem ao indígena guarani Sepé Tiaraju, morto em 1756, enquanto defendia sua terra, na Região Sul, contra os invasores portugueses e espanhóis.
Hoje, na Paraíba, as etnias com maior organização política são os potiguaras, presentes no Litoral Norte do estado, e os tabajaras, localizados no Litoral Sul. Em entrevista ao Jornal A União, lideranças desses povos compartilharam as principais lutas empreendidas pelos indígenas do estado — e como elas estão interligadas. Afinal, conforme também defende Jaqueline, “a luta de um é a luta de todos”.
Território e identidade
Uma das temáticas mais caras aos indígenas é o reconhecimento e a demarcação de seus territórios. Porém, para que isso seja possível, é necessário, inicialmente, o reconhecimento da própria identidade. Esse foi o primeiro desafio enfrentado pelo povo tabajara, como relata a antropóloga Jaciara Costa Maciel, filha do cacique Paulo Tabajara, da Aldeia Nova Conquista Taquara, situada em Conde. Segundo ela, esse movimento foi feito, há 19 anos, por meio de um grupo de trabalho do Ministério Público da Paraíba (MPPB) e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que traçou a árvore genealógica tabajara para provar sua vinculação étnica.
Atualmente, há cerca de dois mil tabajaras na Paraíba, distribuídos em quatro aldeias em Conde. O espaço reivindicado pelos indígenas, contudo, é maior que o que eles já ocupam, chegando a quase 10 mil hectares. Tal perímetro inclui praias como Tambaba e Coqueirinho, além da região de Mata Atlântica ao redor. Jaciara, que também é conhecida como Jaci Tabajara, explica a importância desses lugares. “Tambaba, por exemplo, é uma praia famosíssima, muito conhecida por conta da prática do naturismo, mas, para nós, é o nosso território sagrado, um espaço da nossa cosmovisão. Tambaba é onde está toda a nossa medicina, é lá que a gente tem nossos remédios para as doenças do corpo e do espírito”, conta.
O processo de demarcação desses territórios foi iniciado juridicamente em 2009, mas ainda está em curso — e uma das consequências da lentidão é o avanço da especulação imobiliária. Outro aspecto que torna essa disputa complexa é a presença de outros povos vulnerabilizados, como os assentados da Reforma Agrária. Para Jaciara, é necessário solucionar esses conflitos, a fim de garantir o direito à terra. “A sociedade não indígena, que não teve a oportunidade de conviver conosco, não comunga dos mesmos valores éticos. E pode até nos olhar como impedimentos a um desenvolvimento. Mas, não é isso. Nós somos os povos originários. Nós estamos buscando um processo de demarcação que não é a criação de uma terra indígena, mas a declaração de um espaço que, tradicionalmente, sempre foi ocupado por nós”, enfatiza.
A situação do povo potiguara é diferente. Como sua organização política é anterior à empreendida pelos tabajara, já existem territórios demarcados pela Funai. O mais recente a ser homologado, no dia 4 de dezembro de 2024, foi a Terra Indígena (TI) Potiguara de Monte-Mor, nos municípios de Marcação e de Rio Tinto. Ao todo, são 32 aldeias no estado, parte delas também presente em Baía da Traição, e aproximadamente 20 mil indígenas. Apesar dos avanços, a demarcação não está completa, faltando concluir a desintrusão, etapa de retirada dos não indígenas do espaço declarado.
Resistência inclui ação ambiental e idioma
A ocupação dos territórios, demarcados ou não, tem apresentado desafios aos povos originários paraibanos. A Aldeia Nova Conquista Taquara, por exemplo, foi cedida pelo Estado aos tabajaras em 2019, após a empresa anteriormente proprietária do espaço declarar falência. Todavia, o local é dominado por plantações de bambu, às quais os tabajaras chamam de “deserto verde”.
Para garantir o uso adequado da terra, os moradores têm tentado reflorestar a área, ainda que a passos de formiga, como demonstram os crotes plantados por Jaciara em frente a sua casa. “A gente não consegue [desenvolver] ainda a agricultura de sobrevivência, porque é muito difícil lidar com esse bambu exótico. Mesmo assim, a gente está iniciando um pouquinho de agrofloresta e, aos poucos, vai plantando, para tentar recuperar o solo”, aponta.
Nas terras potiguaras, o dilema assume a forma de outra espécie vegetal: a cana-de-açúcar. De acordo com Jaqueline Ciríaco, que também é filha do Capitão Potiguara, importante liderança local, a dominância dessa cultura traz impactos ambientais à região. Contudo, não é possível extinguir totalmente o plantio, já que muitos indígenas dependem do cultivo. “Quando você utiliza a terra para o plantio da cana, não consegue, na sequência, utilizá-la para outro tipo de lavoura. Então, buscar outras alternativas de renda faria com que a gente não dependesse só da cana-de-açúcar e com que o solo e as águas do nosso território não sofressem tanto”, comenta.
Língua
Além da luta territorial e ambiental, outro aspecto que une os tabajaras e os potiguaras é o tupi antigo, compartilhado pelas duas etnias. Há, contudo, uma diferença na forma como o idioma se estabeleceu. No Litoral Norte, muitos indígenas já têm o tupi como segunda língua, graças ao ensino nas escolas. No Litoral Sul, no entanto, a retomada desse elemento identitário ainda está em estágios iniciais, sendo fruto, principalmente, de esforços individuais. Isso porque ainda não existem instituições de educação indígena nas aldeias tabajaras. “Um dos sonhos da gente é retomar a língua, porque o primeiro processo que nos distanciou e silenciou foi quando tiraram a língua. Mas a gente tem projetos de inserir [o curso de tupi] no contra-turno, nas escolas que estão aqui próximas e onde há maior incidência dos nossos estudantes”, informa Jaciara.