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Partos vaginais diminuem no estado

publicado: 11/11/2024 09h40, última modificação: 11/11/2024 09h40
Profissionais apontam falta de informação e de apoio durante o pré-natal, o que leva a gestante a se guiar pelo medo
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Nataly, com o filho Amir: o desejo do parto normal foi desaconselhado na primeira consulta | Foto: Arquivo pessoal

por Marcella Alencar*

Em 2022, quando a assistente social Nataly Barros descobriu a gravidez do seu primeiro filho, Amir, ela procurou assistência médica particular em Campina Grande, onde mora. Ao falar sobre a sua vontade de ter um parto normal, ela foi desestimulada pelo médico. “Ele tinha uma concepção conservadora do parto. Quando falei sobre o que eu queria, ele me disse que parto normal ‘acabava’ com a mulher”, conta.

Na Paraíba, situações como a que Nataly passou não são incomuns. O percentual de partos vaginais caiu de 30,63% para 21,18%, entre 2017 e 2022, segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Em contrapartida à redução dos partos naturais, a cirurgia cesariana teve um aumento de 13,6% (de 69,37% para 78,82%), no mesmo período.

De acordo com a ANS, no Brasil, o número de cesarianas continua a crescer e se distancia cada vez mais da recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de apenas 15% de nascimentos via cirurgia — percentual estimado de casos em que o procedimento é realmente necessário. No país, aproximadamente 59,7% dos nascimentos realizados no ano passado, incluindo aqueles realizados em hospitais públicos, foram por meio de cesariana, ante 58,1%, em 2022 — se considerados apenas os planos de saúde, as cesarianas representaram cerca de 82% dos nascimentos, em 2022.

"Ao dar início ao pré-natal, 70% das mulheres querem ter parto normal, mas, ao longo do processo, vão sendo convencidas do contrário"
- Melânia Amorim

A ginecologista Melânia Amorim, também obstetra e professora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), diz que a falta de incentivo ao parto normal é um dos problemas vinculados à redução desse tipo de nascimento. Segundo ela, a primeira mudança que deveria ocorrer, no tratamento dessa questão, é de nomenclatura. “No Brasil, convencionou-se chamar a cesariana de ‘parto’ cesáreo. No entanto, a cesariana não é um parto, mas uma via de nascimento — e isso não é uma bobagem, não é uma questão ‘politicamente correta’, apenas”, defende.

A médica se diz bastante preocupada com a direção dada aos processos que envolvem o nascimento de um bebê, pois, conforme argumentou, o modo de vida atual é centrado na doença, com um modelo intervencionista e tecnocrático. “Todo tipo de problema é inventado: que elas vão ficar frouxas, que vão ter incontinência urinária... Mas tudo isso é mito. Muitos médicos pioram os receios que as mulheres já têm diante do desconhecido”, argumenta.

Esse foi o caso de Nataly durante o seu pré-natal. O medo do parto acabou aumentado, diante dos possíveis problemas listados pelo médico. “Tanto o parto natural quanto a cesárea me davam muito medo, porque é uma mudança muito grande no corpo da mulher”, diz ela.

Escolha

De acordo com Melânia, os médicos tentam vender a ideia de que a escolha da cesariana é unicamente das mulheres. No entanto, no campo da bioética, a autonomia não é um valor absoluto sobre outros. A cesariana não é uma via de nascimento natural, mas uma cirurgia desenvolvida como medida salvadora.

Um estudo realizado com mais de 24 mil puérperas, em 2012, traz um recorte sobre o assunto. “Ao dar início ao pré-natal, 70% das mulheres querem ter parto normal, mas, ao longo do processo, vão sendo convencidas do contrário por seus médicos com base em falsos pretextos”, esclarece a médica, com base no relatório “Nascer no Brasil”, realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com diversas instituições científicas do país.

Há mais de 25 anos, Melânia participa do Movimento Pela Humanização do Parto e do Nascimento no Brasil, por meio do qual ela luta contra as cesáreas desnecessárias. “Abordo o tema em pesquisas científicas e também em minhas redes sociais”, diz.

Ela explica que as indicações reais para a cesariana são poucas: prolapso de cordão umbilical; ausência de dilatação completa; descolamento prematuro da placenta com feto vivo fora do período expulsivo — isto é, fora do parto; bebê em posição atravessada na bacia materna; mudanças não habituais na placenta; complicações de ruptura do cordão umbilical; e herpes genital com lesão ativa no momento do trabalho de parto. No entanto, todos os fatores precisam ser avaliados com muito cuidado durante o pré-natal, para que a decisão sobre o parto seja muito bem embasada.

Medo, dores, frustração: parir como ato de empoderamento

Embora a pandemia seja apontada como um dos fatores que ajudaram a aumentar o número de cesáreas, Melânia acredita que o motivo principal é outro: a lógica produtivista. “É muito mais fácil, para um médico, marcar os horários na sua agenda e realizar várias cirurgias em um só dia. Eu não sou contra a cirurgia cesariana, que fique claro, mas a mulher precisa estar bem informada para se decidir”, ressalta.

A enfermeira obstétrica e doutora em Saúde Pública Waglânia Mendonça reforçou a fala da médica sobre a escolha pelas cesáreas. “O Brasil é o segundo país com o maior número de cesáreas. Isso acontece porque vivemos a cultura do medo da dor e a desinformação sobre os riscos de uma cirurgia de médio porte, como é a cesariana”, argumenta.

 A escolha, conforme as duas profissionais, não deve partir do lugar do medo e da falta de informação, pois a pessoa pode dizer que escolheu, mas, muitas vezes, não é assim que acontece. As falsas explicações aumentam o receio, o que faz Melânia acreditar que a opção materna, provavelmente, mudaria se as mulheres fossem devidamente esclarecidas. “Além disso, as cesáreas têm indicações muito bem evidenciadas por pesquisas científicas, não é para todos os casos”, observa.

 Desestímulo

Assim como aconteceu com Nataly, a hora do parto também assombrou a estrategista de conteúdo digital Mariana Aires d’Angelis, mãe de Miguel, de 13 anos, e de Calebe, de três. “Muita gente ficou me desestimulando, dizendo para eu marcar logo a cesárea, que eu não iria aguentar...”, lamenta. E, assim, o seu primeiro filho veio ao mundo por cesárea. Mariana ficou deprimida. “Eu me senti só e incapaz de cuidar dele, porque sentia muita dor”, lembra.

Na segunda gravidez, ela escolheu uma médica focada em parto humanizado e fez fisioterapia pélvica, para ajudá-la na hora de parir, além de ter se cercado de informações. Dessa vez, conseguiu viver a experiência que queria ter tido na primeira gravidez. “Eu vivi a hora de ouro com o bebê, quando ele fica ali, mamando, aconchegado, e tive uma recuperação maravilhosa”, conta. Apesar da dor, ela diz que não mudaria nada.

O caso de Nataly não teve o mesmo desdobramento. Ela mudou de médico e seguiu o pré-natal pelo Sistema Único de Saúde (SUS), na maternidade do Instituto de Saúde Elpídio de Almeida (Isea). Mesmo com todas as informações na mão, ela acabou fazendo cesariana, pois não conseguiu entrar em trabalho de parto. Quando o dia esperado chegou, veio junto a frustração de passar 36 horas tentando e não conseguir ter o bebê.

“Eu fiquei frustrada e me comparando com todas as mães que estavam ali, parindo, naquele processo coletivo, e eu não conseguia”, lastima. No ambiente cirúrgico, ela se sentiu muito sozinha. “Fiquei mal, lá é muito diferente. Minha sorte foi  contar com uma médica bastante humana”, lembra.

Orientar
A vontade da pessoa gestante precisa ser respeitada, mas é necessário que haja mais informação sobre os benefícios e as vantagens de um parto vaginal

 Turbilhão

Segundo Melânia, quando se aproxima a hora de ter o bebê, a gestante vive um turbilhão de sentimentos. “Elas têm medo da dor e da violência obstétrica, que é real e acontece muito. Mas esse medo poderia e deveria ser evitado”, diz. O caminho para isso é básico: informação clara e com fundamento científico, acompanhamento com monitoramento completo da saúde materna e do bebê e avaliação de sinais de risco (como infecção, hipertensão gestacional, pré-eclampsia e diabetes). “Dessa forma, é possível ter uma gravidez tranquila e um parto seguro”, acrescenta.

Nesse sentido, a médica aponta a função de Waglânia como essencial. “A enfermeira obstetra é o padrão ouro para a assistência à pessoa gestante. Ela possui autonomia para a assistência integral, desde o planejamento reprodutivo até o puerpério”, avalia. 

Dez anos depois, Mariana, enfim, teve um parto normal | Foto: Arquivo pessoal

 Autonomia

De acordo com Waglânia, durante o trabalho de parto, não são oferecidos ambiente e ambiência para uma vivência positiva desse ato, com métodos de alívio à dor e profissionais gentis na promoção do cuidado. “Não é raro as mulheres relatarem que os profissionais que as assistiram gritaram com elas”, conta. Para ela, o cuidado obstétrico contemporâneo tem produzido experiências de violência para quem escolhe o parto vaginal. 

Waglânia e Melânia defendem que a vontade da pessoa gestante precisa ser respeitada, mas é necessário que haja mais informação e orientação sobre os benefícios e as vantagens de um parto vaginal. “Inúmeras evidências científicas mostram que, se o bebê não se expõe ao microbioma vaginal, tem mais chances de ser asmático, ter obesidade e hipertensão, entre outros problemas de saúde”, explica a médica.

Além disso, o parto normal, de acordo com Waglânia, não se resume às gestantes. Todo o SUS e o meio ambiente ganham, pois ele diminui os custos. Para a grávida, reduz o risco de hemorragia, infecção, lesão na bexiga e de intestino, que podem ocorrer na cirurgia. “Além disso, promove o empoderamento da mulher e a sua autonomia para cuidar de si e do bebê”, reforça.

Melânia faz questão de dizer que os profissionais de saúde têm papel secundário, durante o parto: “Ninguém da área de saúde realiza um parto. Quem o realiza é a mulher; a gente só presta assistência”.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 10 de novembro de 2024.