Trabalhar a ancestralidade, identidade e pertencimento dentro de uma política pedagógica que celebra a negritude e as heranças africanas. Essa é a ideia principal do projeto “Do Chão do Quilombo para o Chão da Escola”, desenvolvido durante todo o ano pela Escola Municipal Quilombola Antônia do Socorro Silva Machado, em Paratibe, única escola quilombola de João Pessoa. Dislene Soares, pedagoga e coordenadora do projeto, explica como a ideia funciona na prática.
“Trabalhamos com as brincadeiras e as histórias da África, as histórias do quilombo. E principalmente, com as mulheres do quilombo, a questão do protagonismo negro feminino e a trajetória de Dona Antônia, uma mulher preta quilombola à frente do seu tempo, que vendo essa necessidade da comunidade em estudar, começa nesse movimento na sua própria casa, ensinando algumas crianças ali da vizinhança”, disse Dislene.
Vestidas com as roupas típicas do coco de roda, alunos entre seis e sete anos também contam um pouco da história. “Dona Antônia ensinava as crianças no quintal de sua casa. Não teve filhos, mas amava cuidar dos sobrinhos. Depois ela fez a doação de um terreno para a construção da escola”, dizem em coro, antes da apresentação do coco de roda.
Saiba Mais: A culminância do projeto “Do Chão do Quilombo para o Chão da Escola”, aconteceu no dia 17 de novembro, no Quilombo de Paratibe, com vivências e apresentações culturais da Escola Municipal Quilombola Antônia do Socorro Silva Machado.
Hoje as crianças se orgulham da sua negritude e de seus antepassados africanos, mas nem sempre foi assim. Dislene lembra que tudo é resultado de um processo que começou ainda em 2015. “Tivemos que parar toda a equipe para entendermos que estávamos numa escola quilombola, atendendo uma comunidade quilombola e vieram os questionamentos: como devemos ser, que caminhos devemos percorrer e de que forma devemos abordar? Partimos então para um processo de estudo e de desconstrução, para aprendermos a lidar com as questões indenitárias”, diz a pedagoga.
“A partir dessa mudança interna de visão e de aprendizagem, começamos a conduzir esse processo pedagógico e indenitário com outro olhar, e percebemos mudanças nas crianças, que eram quilombolas, mas que não se identificavam como tal. Crianças pretas que associavam a sua cor ao pejorativo e ao ruim, até nas brincadeiras. Foi um movimento de construção de aprendizagem, tanto das crianças quanto dos professores, uma autoafirmação de sua negritude e de pertencimento ao quilombo”.
Pertencimento
Ismark Nascimento, professor de artes e maestro do coco de roda, concorda que o pertencimento é a questão mais forte dentro desse processo. “Precisamos saber quem somos, de onde nós viemos, onde queremos chegar. E você saber dessa sua parte ancestral, que lhe pertence, do território, da cultura, da localidade, eu acho que isso influencia bastante no desenvolvimento do ser humano e até mesmo na questão de caráter”, diz o professor.
A pequena Julia Andrieli conhece não só o ritmo, a música e a dança, mas toda a história e simbolismo que o coco de roda representa. “Quando as pessoas morriam ou era aniversário de alguém, quando os pescadores iam pescar, e as meninas esperavam por eles na beira da praia, com a blusa branca e a saia bem estampada”, diz a aluna, da turma do Ensino Infantil, rememorando o que ouviu.
Diretora pedagógica da unidade de ensino, Vanessa Ferreira salienta que a abrangência desse projeto independe de espaço e que abrange não só os alunos. “Ele está vivo dentro dos professores, nas suas atividades pedagógicas. É um ganho que não é só do aluno, mas de todas as pessoas envolvidas, o quanto todos temos crescido enquanto pessoas. É gratificante ser um instrumento para indicar esses caminhos, para que essas crianças encontrem sua própria identidade”.
Na roda de capoeira, meninas e meninos competem em igualdade de ritmos, entusiasmo e movimento, e essa ‘mistura’ também agrega os alunos com deficiência. Dislene se emociona quando fala sobre a proposta de inclusão que todo esse projeto representa. “Precisamos ter em mente que isso não pode ser pontual, tem que ser algo trabalhado diariamente”, conclui.
Antiga moradora revoluciona aprendizado na comunidade
Dona Antônia do Socorro Silva Machado nasceu em três de março de 1930, em João Pessoa, e era a sexta filha do segundo casamento de seu pai, Olavo Pedro da Silva. Antônia casou, e mesmo não tendo filhos biológicos cuidou dos oito sobrinhos, depois que sua irmã faleceu.
Precisamos saber quem somos, de onde viemos, onde queremos chegar. Saber dessa sua parte ancestral, acho que influencia no desenvolvimento do ser humano - Ismark Nascimento
Muito querida por todos na Comunidade Paratibe, conseguiu inverter a situação escolar das crianças, jovens e adultos da comunidade que viviam, na década de 1950, longe da escola, já que o local era muito afastado do centro de João Pessoa.
Por conta dessa dificuldade, Antônia inicia um trabalho de alfabetização local em uma escolinha particular, no quintal de sua casa, conhecida como “escola de D. Antônia”. Ainda na década de 50, ela já havia se tornado a maior proprietária de terras na localidade de Paratibe, responsável por gerenciar, também, a vida cotidiana das famílias.
No início da década de 70, Dona Antônia doa um grande terreno para a Prefeitura Municipal de João Pessoa, com o objetivo de construir a primeira escola pública em Paratibe.
Inaugurada no ano de 1972 com o nome de Grupo Escolar Municipal José Peregrino de Carvalho, a escola contava, inicialmente, com quatro salas: uma diretoria, uma cantina e mais dois cômodos para as aulas. Da inauguração, em 1972, até sua morte, em 1992, Dona Antônia foi a diretora da escola municipal, que recebeu seu nome em homenagem e reconhecimento ao trabalho de uma vida dedicada à educação de sua comunidade.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 19 de novembro de 2023.