A cidade é um lugar em disputa, onde os diferentes se sobrepõem por espaço, por visibilidade, por sobrevivência. Para além da disputa das pessoas, uma outra batalha, essa no campo imaterial, intangível, acontece de forma silenciosa: o velho versus o novo, o passado e o futuro. Em paralelo ao debate por moradia, um requisito básico de dignidade ao ser humano, existe o debate sobre a herança cultural do desenho urbano que sofre com a ação do tempo, a arquitetura que carrega um pedaço da história que vai sendo apagada por falta de preservação.
Neste caso, a capital paraibana reserva uma peculiaridade em seus traços urbanos. Conhecida nacionalmente pelas enseadas que recortam seu litoral, pelo ponto mais Oriental das Américas - a Ponta do Seixas, o valor histórico e cultural do desenho citadino fica relegado aos olhares mais atentos dos profissionais de arquitetura. Porém, o que poucas pessoas sabem é que João Pessoa, durante os anos de 1956 e 1974, por quase duas décadas, foi cenário da criatividade de um grupo de arquitetos criados pela Escola de Belas Artes do Recife.
O pesquisador Fúlvio Pereira, em sua dissertação de mestrado defendida na Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo em 2008, intitulada Difusão da Arquitetura Moderna na Cidade de João Pessoa (1956-1974), detalha como os arquitetos e urbanistas formados no Recife no período ajudaram a desenhar um novo horizonte na capital paraibana influenciados pelo movimento modernista. Porém, o trabalho de vários nomes da arquitetura moderna está ruindo juntamente com suas obras.
A professora Wylnna Vidal, integrante do Laboratório de Pesquisa Projeto e Memória, do Programa de Pós-Graduação de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), explica que a falta de um distanciamento histórico em relação à arquitetura modernista, da segunda metade do século 20, é um entrave para que haja um processo de preservação desses prédios, sobretudo nos prédios particulares, uma vez que os públicos estão em utilização ou podem sofrer alguma intervenção a partir de algum projeto.
“Em via de regra, as coisas mais antigas são vistas, mais facilmente reconhecidas, como patrimônio [a ser preservado]. No entanto, a arquitetura moderna está começando a ter um distanciamento que vai dar esse espaço para essa compreensão. A pena é que esse tempo de distanciamento está se dando com a perda de muitos exemplares. A maioria dessas perdas são de casas particulares, que é o elo mais frágil nessa cadeia de preservação”, comentou.
Para entendermos a riqueza da arquitetura moderna no traço urbano da capital paraibana, é preciso discorrer sobre a forma de ocupação da urbe da cidade. Inicialmente ocupada a partir do Rio Paraíba, do bairro do Varadouro, o processo de expansão em direção ao Litoral, às praias, foi lento pelo relevo de João Pessoa, sobretudo por conta da região do atual Parque da Lagoa, antes conhecida como Lagoa dos Irerês ou Parque Solon de Lucena. Até meados de 1930, a população não havia avançado suas moradias rumo ao mar porque o terreno alagadiço impedia a ocupação.
Essa demora, de quase 400 anos na expansão do rio para o mar, coincidiu com a efervescência do movimento modernista na arquitetura. Por esse motivo, muitas casas que foram sendo construídas na região central e em bairros que “caminhavam” rumo às praias continham desenhos modernistas em sua composição arquitetônica.
Mapeamento identificou 30 construções modernistas
A existência de edificações modernistas, necessariamente, não torna João Pessoa uma cidade modernista, porque não foi projetada para tanto em seu traçado urbano, mas que, de certa forma, contém uma herança importante da arquitetura moderna.“É uma cidade de traços coloniais. A gente tem todos os períodos da arquitetura brasileira presentes na nossa cidade, uma das poucas. Mas dizer que é uma cidade modernista, não vejo dessa forma porque uma cidade modernista foi pensada, planejada. João Pessoa não teve esse planejamento urbano. Ela teve seu crescimento de acordo com a sua geografia e de acordo com os princípios de uma cidade colonial, que aos poucos foi ganhando essa expansão para a praia, e que foi tendo a presença de alguns prédios modernistas”, avaliou o presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo da Paraíba (CAU-PB), Eduardo Nóbrega.
Ainda de acordo com o presidente do CAU-PB, é lamentável que ainda não exista um dispositivo legal, uma preocupação por parte do poder público, que ordene a preservação do patrimônio histórico e cultural especificamente para a arquitetura modernista. “Muitas obras modernistas são destruídas porque a gente ainda não tem essa lei de preservação do modernismo como história da cidade. A partir do momento que a gente perde uma obra modernista está perdendo um pedaço da nossa história, que não é só aquela do início da colonização. O modernismo faz parte dessa história, de um avanço da nossa arquitetura”, completou.
Entre prédios públicos e particulares, a arquitetura modernista ainda resiste entre as ruas da cidade. Um trabalho feito por arquitetos e pesquisadores de João Pessoa em 2010, para apresentação, quando a capital sediou o congresso do Comitê Internacional para a Documentação e a Conservação dos Edifícios, Sítios e Bairros do Movimento Moderno (Docomomo), listou em um mapa 30 obras modernistas de João Pessoa, numa espécie de tour em um museu aberto. A professora Wylnna Vidal relata que alguns dos prédios já não existem mais.
“Dessas obras que foram listadas para essa visita guiada pela cidade, sabemos que algumas já não existem, principalmente, as que são prédios particulares. De 2010 para cá, essas casas foram derrubadas, deram lugar a edifícios comerciais ou residenciais, ou simplesmente foram reformadas a partir de uma visão contemporânea. De fato, uma perda de parte da história da arquitetura moderna paraibana”, avaliou. O tempo que foi amigo da arquitetura modernista, atrasando o avanço da ocupação rumo ao mar de João Pessoa, é o mesmo que hoje se opõe à sua preservação.
Soluções contemporâneas para um problema antigo
O problema dos prédios de arquitetura modernista de João Pessoa na verdade é uma situação comum a todos os outros espalhados pelas cidades do Brasil. São prédios que contém uma herança histórica que precisa ser preservada, mas que, diante da falta de cobertura por parte do poder público, de dispositivos ou projetos que contemplem a proteção, que permitam a ação do Estado.
Giovani Barcelos, arquiteto e chefe da Divisão Técnica do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) na Paraíba, explica que qualquer prédio, seja ele particular ou público, pode ser tombado por valores históricos ou de belas artes. O primeiro critério é ligado à questão da memória, enquanto o segundo está relacionado ao valor artístico. “O Iphan legisla sobre os bens imóveis tombados como patrimônio cultural do Brasil e sobre a área de entorno deles, ou seja, se não for objeto de tombamento, o Iphan pode cooperar em ações de proteção, mas não será o protagonista. É importante destacar nesse ponto que a proteção do patrimônio cultural pode ocorrer pelos governos Federal, Estadual e Municipal, sendo uma relação horizontal, não sendo um mais importante que o outro. A partir do momento que o bem for tombado por uma dessas esferas, já estará protegido”, detalha a atuação.
Ou seja, os órgãos públicos de proteção ao patrimônio só podem agir dentro do trâmite burocrático do Estado, respeitando processos e legislações, impedido, neste caso, de fazer algo para evitar a substituição dos prédios modernistas de João Pessoa. O problema, no entanto, não é a falta de trabalhos científicos ou catalogação dos prédios que deveriam ser preservados dentro da lógica artística do movimento modernista.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 19 de novembro de 2023.