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Maior festa folclórica do Nordeste mescla fé e superstições seculares que resistem às mudanças sociais

Período junino: festejos de tradições sacras e pagãs

publicado: 20/06/2022 09h30, última modificação: 22/06/2022 09h06
Quadrilha junina Foto Codecom CG.jpg

Foto: Codecom-PMCG

por Ítalo Arruda*

Depois de dois anos sem a comemoração dos festejos juninos em praças e vias públicas, as cores das bandeirolas e dos balões decorativos, bem como o som das sanfonas e a alegria das quadrilhas voltaram a dar vida e sentido à celebração da maior festa folclórica do Nordeste brasileiro. Além da fé e das superstições que permeiam a cultura junina – mesclando representações sacras e pagãs –, o São João é marcado por tradições que ultrapassam os séculos e resistem às mudanças sociais.

Uma delas é a confecção de fogueiras, uma prática secular que, apesar de ter origem pré-cristã e representar um elemento pagão, foi cristianizada e incorporada às celebrações em homenagem aos santos juninos no Brasil, especialmente a São João, cujo nascimento foi anunciado por sua mãe, Isabel, por meio do fogo. É o que afirma a doutora em Antropologia pela Université Victor Segalen Bordeaux 2, na França, e professora titular do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Luciana de Oliveira Chianca, que há mais de 30 anos tem se dedicado a estudar as festividades juninas.

Ela explica que esse processo ocorreu durante o período de colonização, quando as primeiras manifestações em comemoração ao santo católico ocorreram, e que, inicialmente, foi uma estratégia adotada pelos sacerdotes para atrair os indígenas para o catolicismo, visto que os nativos sempre tiveram uma ligação muito forte com o fogo. “Foi um esforço não só da colonização política, mas também da colonização religiosa. Então, a presença da chama, as danças e brincadeiras em torno da fogueira são os elementos mais antigos das tradições juninas, que perduram até hoje”, afirma Chianca.

Ainda segundo a pesquisadora, a principal característica das fogueiras no mês de junho é “a relação de apadrinhamento” que há entre um morador de determinada casa e o santo celebrado no ciclo junino. “Ou seja, se uma pessoa é afilhada de Santo Antônio, ela acenderá fogueira na véspera de Santo Antônio. Se for protegida de São João, a fogueira será acesa na véspera de São João. E o mesmo se dá com São Pedro”.

Além do sentimento religioso e de devoção, a fogueira também tem como função aproximar as pessoas e proporcionar momentos de confraternização e partilha, acrescenta Luciana Chianca. Conforme explica a pesquisadora, estes festejos são comemorados tanto pela perspectiva religiosa quanto pela programação laica e intercultural, como as quermesses e festas de ruas – que não remetem diretamente ao santo, mas ao prazer de festejar em família ou entre amigos, de compartilhar comidas e promover a sociabilidade e a vivência da cultura junina. 

“Isso vai dar origem a muitas coisas que, com o passar do tempo, foram introduzidas às tradições, a exemplo das adivinhações e simpatias, do compadrio e das alianças afetivas e amorosas que se estabelecem nesse período”, frisa.

Fogueiras proibidas

Desde 2020, está em vigor a Lei estadual nº 11.711/2020 que proíbe acender fogueiras em espaços urbanos durante as festividades juninas na Paraíba. A medida foi adotada em decorrência da pandemia, com o objetivo de proteger as pessoas infectadas pela Covid-19 e evitar possíveis danos à saúde respiratória, provocados, sobretudo, pelo excesso de fumaça.

Além disso, a lei também prevê imposição de multas no valor de 10 Unidades Fiscais de Referência do Estado da Paraíba (UFR-PB) para quem descumprir a determinação. Em caso de reincidência, a multa será aplicada em dobro.

Das origens das festas às mudanças da cultura popular

Não se sabe ao certo quando as primeiras manifestações em comemoração e homenagem a São João ocorreram no território paraibano. No entanto, segundo Luciana Chianca, especula-se que isso tenha acontecido por volta do século 16, com as primeiras colônias e os primeiros aldeamentos no estado. 

“Não se tem uma data fechada com relação às primeiras manifestações. É provável que elas aconteçam desde o período colonial, no entanto, são apenas especulações. O que se sabe é que os jesuítas trouxeram algumas manifestações das tradições juninas e festividades a São João, como aquelas baseadas em fogueiras e brincadeiras em torno do fogo”, explica.

A professora ressalta que a festa de São João é considerada a segunda data mais importante do calendário católico, podendo, inclusive, ser equiparada ao Natal, pois, assim como Jesus, a celebração a João Batista se dá em virtude do seu nascimento e não da sua morte, como é o caso dos demais santos da Igreja Católica. “Além disso, também se trata de uma festa que junta as pessoas, as famílias, os amigos, a vizinhança e que coloca para fora o que a sociedade tem de melhor”, complementa.

Mudanças

Luciana também destaca que as festas e tradições juninas passam por um processo de reconfiguração no qual a própria sociedade regula as transformações e decide o que permanece e o que é deixado de lado, como o estilo incorporado às quadrilhas, os diferentes tipos musicais nos shows realizados nas cidades, além de outras práticas que dão novos formatos e novas características a tais festividades, como, por exemplo, o caso das quadrilhas.

“A gente precisa fazer adaptações se quiser continuar com a festa. A sociedade mudou, os hábitos mudaram e os festejos juninos também se urbanizaram. As pessoas tentam introduzir o novo, e a tradição também pode se renovar, se não ela vira anacrônica e perde o sentido”, avalia a pesquisadora, ao defender que essas transformações não apagam a tradição popular, uma vez que ela está ancorada no povo. “O que se deve ter cuidado é para que a tradição popular não seja sufocada. É preciso oferecer espaço para que ela continue se expressando e possibilitando novas experiências”.

 *Matéria publicada originalmente na edição impressa de 20 de junho de 2022.