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Perseguições causam adoecimento

publicado: 03/06/2024 13h26, última modificação: 03/06/2024 13h26
Estudo aponta que perturbação da liberdade ou privacidade também é fator de risco para feminicídios
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Redes sociais são “terreno fértil” para agressores, mas crime de perseguição também pode ocorrer fora dos ambientes virtuais | Foto: Carlos Rodrigo

por Emerson da Cunha*

Com o acesso ampliado e facilitado a informações íntimas, pessoais e de localização, seguir alguém na internet passou a ter outras nuances. Possibilidade de anonimato, falsa sensação de segurança e ansiedade gerada por dispositivos eletrônicos reconfiguraram a prática da perseguição, com brechas para ações mais intrusivas, deixando a vítima vulnerável  ao desenvolvimento de problemas de saúde, como crises de pânico e depressão.

Desde 2021, a perseguição on-line e/ou presencial – ou de stalking, termo em inglês para esse comportamento – se tornou crime no Brasil. Porém, dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023 mostram que esse tipo de conduta tem se tornado mais comum. O relatório aponta que, na Paraíba, as denúncias cresceram 88,72%. Em 2021, foram registrados 133 casos, ao passo que em 2022 o número de ocorrências subiu para 251.

Apesar dos dados alarmantes, a Paraíba foi o estado que apresentou a menor proporção de casos de stalking contra mulheres no Brasil em 2022: 12,2 casos por 100 mil mulheres.

A Lei no 14.132 estabelece que é crime “perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade”, com penas de reclusão de seis meses a dois anos, e multa, com pena aumentada em 50% se o crime a depender da situação. Além disso, se a perseguição for realizada por companheiro, ex-companheiro ou pessoa do círculo doméstico e familiar, o caso pode ser enquadrado dentro da Lei Maria da Penha como violência doméstica.

Risco de feminicídio

No caso de violência contra a mulher, além da violência psicológica e física que o stalking pode trazer, há uma grave preocupação. O ato de perseguir pode ser fator relevante e anterior na ocorrência de feminicídios. Segundo pesquisa realizada na Austrália, citada no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, foi verificado que 76% das vítimas de feminicídio e 85% das vítimas de tentativas de feminicídio sofreram perseguição do agressor nos 12 meses antes da ocorrência.

“O cyberstalking é uma atualização dessa perseguição. Como a gente tem as redes sociais hoje, a internet trouxe esse novo mal, que é a perseguição que ele faz por meio da internet, nas redes sociais dessa mulher. Na verdade, foi só um aprimoramento da violência. Infelizmente, os agressores também aprimoram seus métodos”, explica a gerente-executiva de Equidade de Gênero da Secretaria de Estado da Mulher e da Diversidade Humana (Semdh), Joyce Borges.

Além disso, ela aponta que a mulher ainda suporta muito tempo até se perceber como vítima. “Quando ela começa a se sentir ameaçada e aprisionada, não consegue mais sair de casa, não consegue mais manter as relações de amizades. De fato, os agressores fazem isso para que a mulher fique isolada. Ela suporta muito tempo até perceber que aquilo está ameaçando a vida dela e atrapalhando sua qualidade e seu ritmo de vida. Ela começa a deixar de fazer coisas que poderia fazer habitualmente. Aí, de fato, começa a buscar ajuda”, indica a gerente.

Relação contemporânea

Mas será que o cyberstalking e o stalking não se relacionam com nossas características de sociabilidade e interações digitais do nosso tempo? O pesquisador Paulo Gregório aponta, por exemplo, a naturalização do uso do celular como uma extensão nossa nesses fatores. “Estou no relacionamento, a pessoa não respondeu, já me chateio. Você está com alguém, já acha que pode ser invasivo mesmo, que é natural. A gente tem que ter cuidado nas nossas relações”, diz.

“A gente é muito solitário nos próprios relacionamentos, é tudo muito superficial. A gente ao mesmo tempo quer ter a necessidade de controlar a vida do outro. Há esse medo de perder informações, alguma coisa da vida da outra pessoa, até nas redes sociais”, defende o pesquisador.

Comportamentos afetam diversos aspectos da rotina da vítima

Joyce Borges lembra que é extremamente importante que a vítima, ao menor sinal de qualquer tipo de violência de gênero, incluindo perseguição, remeta-se aos órgãos competentes.

“O agressor não para. Pelo contrário, ele aumenta a violência. Pode-se chegar ao homicídio ou mesmo ao suicídio da vítima”, aponta a gerente-executiva de Equidade de Gênero da Semdh.

Nesses casos, Joyce aponta dois caminhos: ir à delegacia ou ao Centro de Referência da Mulher mais próximo. No caso da delegacia, pode-se registrar uma denúncia contra o agressor diretamente, ou, caso a mulher opte por não denunciar por medo, ela pode fazer o pedido de medida preventiva para que o agressor não se aproxime. Em João Pessoa, Campina Grande, Bayeux, Cabedelo, Santa Rita e Sousa, esse pedido também pode ser feito por meio do aplicativo e site Maria da Penha Virtual.

Já os Centros de Referência da Mulher acolhem e aconselham de forma jurídica, psicológica e social a vítima de violência de gênero. Se a mulher estiver sofrendo ameaça à vida, ela pode também buscar as casas abrigo, que podem acolhê-la a partir do encaminhamento de um órgão competente.

Qualquer denúncia pode ser realizada nos Disques 100 (Direitos Humanos), 180 (Violência contra a Mulher), 197 (Polícia Civil) e 190 (Polícia Militar).

 

Características

Segundo a doutoranda em Psicologia da UFPB e pesquisadora do tema Isabella Santos, o stalking é caracterizado pela insistência ou repetição do monitoramento da vítima. “Eu diria que não existem tipos de stalker, mas níveis de gravidade desse comportamento. Muitos de nós já nos envolvemos em comportamentos considerados cyberstalking, mas que são vistos como ‘menos graves’ ou ‘socialmente aceitos’”, alerta.

Segundo ela, o objetivo do agressor é sempre controlar a vítima. “As vítimas mais comuns são ‘rivais’ do stalker ou interesses românticos. No contexto de relacionamento, seja existente ou apenas desejado, o agressor pode usar a perseguição como uma forma de fortalecer a conexão que ele acredita ter com a vítima”, explica.

Paulo Gregório, doutor em Psicologia Social, estudou stalking em relacionamentos íntimos e verificou que pessoas narcisistas eram as que mais perseguiam seus parceiros. “É alguém que tem comportamento intrusivo, vai ficar perseguindo alguém, criando situações para contato físico e íntimo. São tentativas de relacionamento interpessoal, por meio de e-mails ou contas falsas. Isso pode estar relacionado a uma dependência emocional”, aponta.

Ele defende que o cyberstalking traz características próprias. “O ambiente virtual dá possibilidade de você se fantasiar mais, fingir que é alguém, se passar por outra pessoa. Não necessariamente há um relacionamento íntimo, pode ser que eu nem conheça uma pessoa e a persiga, o que é muito mais perigoso”, arremata.

Consequências

O stalking pode trazer consequências físicas, mas as psíquicas são mais latentes. “Às vezes, a mulher tem que trocar de trabalho, número telefônico, casa, toda a rotina em função do medo que sente. Isso causa ansiedade, depressão, insegurança, síndrome do pânico. Tudo isso está muito associado à depressão e ao estresse”, ressalta Paulo Gregório.

“A violência doméstica deixa marcas psicológicas que muitas vezes essa mulher não vai esquecer nunca. Mas o acompanhamento psicológico é importante porque ela vai aprender a lidar com estas lembranças de forma que não atrapalhe mais a vida dela, nem a machuque”, lamenta Joyce Borges.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 02 de junho de 2024.