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felicidade tóxica

Pressão para ter uma vida perfeita

publicado: 21/10/2024 09h12, última modificação: 21/10/2024 09h12
Comparar a própria realidade com os padrões irreais das redes sociais pode causar depressão, ansiedade e apatia
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Ilustração: Bruno Chiossi

por Samantha Pimentel*

“Veja pelo lado bom” ou “Não é tão ruim assim” ou, ainda, “Não ligue pra isso, logo vai passar”. Essas e outras expressões costumam ser usadas como uma forma de estimular a positividade e a felicidade constantes, como se fosse necessário — e possível — anular o sentimento de tristeza, de frustração ou de sofrimento. Essa cobrança para estar bem e feliz o tempo inteiro, chamada de “felicidade tóxica”, muito alimentada pelas redes sociais, traz prejuízos à saúde mental, podendo causar, ou agravar, problemas como ansiedade e depressão.

Uma pesquisa realizada em 40 países e publicada pela revista científica Nature mostra que a pressão social para ser feliz está associada a uma queda do bem-estar individual, sobretudo em países onde há elevados índices de bem-estar coletivo. Segundo a psicóloga Josiplessis Marques, especialista em neuropsicologia, a felicidade tóxica está muito ligada a uma “neurose coletiva”, como diria Carl Jung, psiquiatra e psicoterapeuta suíço, fundador da psicologia analítica. “Essa neurose se refere a estar ou parecer estar sempre bem, como uma busca por aprovação social — ou, na atualidade, por likes”, explica.

Essa positividade ilusória costuma ser alimentada pelo discurso motivacional, universo em que influenciadores, coaches e outras figuras que compartilham recortes de uma vida perfeita pelas redes sociais são os principais estimuladores dessa distorção. “Ninguém posta nada muito verdadeiro, mostra apenas o ideal. E as pessoas que seguem esses perfis também ficam perseguindo essa felicidade idealizada, como se isso lhe desse mais aceitação social. Parecer feliz é uma necessidade quase patológica. Você não deve mostrar o feio, tem de mostrar a sua melhor versão. Não importa se está doente, se está devendo, se está em crise conjugal, se os filhos não são os mais bem-comportados e com as melhores notas… O que importa é aparentar perfeição”, destaca a psicóloga.

"Parecer feliz é uma necessidade quase patológica. Você tem de mostrar somente a sua melhor versão"
- Josiplessis Marques

A busca pelo modelo ideal de felicidade, comparando a própria realidade com os padrões inalcançáveis propagados pelas redes sociais e outros meios, vem causando sofrimento em muitas pessoas. Conforme Josiplessis, comparar-se constantemente com os outros pode causar ansiedade. “Essa referência de vida ideal tem provocado muita angústia. Se a pessoa já tiver predisposição, isso pode desencadear estados depressivos, causar apatia e levar a outros transtornos”, reforça.

A profissional conta que recebe, em seu consultório, pessoas com experiências e sentimentos do tipo. “De uma delas, ouvi que, em feriados, ela não gostava de acessar as redes sociais, porque sentia raiva e inveja. Via muitas pessoas em resorts, com a família, todos muito unidos, enquanto ela estava passando por um divórcio ou por uma crise financeira, e aquilo a irritava. Veja só como essa comparação ativa sentimentos ruins”, destaca.

Devido à pressão social para se mostrar feliz o tempo todo, muitas pessoas acabam passando por seus momentos de dificuldade e tristeza de forma solitária, por receio de ser excluído socialmente, ao expor os seus problemas e reconhecer que a sua vida não é perfeita. Também há quem silencie para não incomodar familiares e amigos com notícias e sentimentos pesados. “A obrigação de ser feliz o tempo todo faz a gente se desconectar do que realmente é. Temos visto pessoas com quadros depressivos graves, passando por um sofrimento profundo, sem demonstrar nada para ninguém, vivendo tudo internamente, numa solidão embutida. E tudo por acreditar que ninguém vai querer a companhia de quem está negativo, de quem está passando por problemas com a família ou com o trabalho. Isso tem gerado uma sociedade solitária”, diz ela.

Alternativas para escapar das armadilhas do “você tem que”

O professor Arlandson Oliveira é um exemplo do quanto essa obrigação de ser feliz o tempo inteiro é nociva, sobretudo durante o uso das redes sociais. Embora nunca tenha tido interesse em acompanhar influenciadores que têm um conteúdo focado apenas na exposição de uma rotina perfeita, isso ainda chegava até ele. “Um tempo atrás, precisei me desligar do Instagram, porque percebi que estava me fazendo mal”, conta. 

Arlandson escolheu passar um tempo sem redes sociais | Foto: Arquivo pessoal

Ele diz que prefere ver memes, receitas, dicas de lugares para visitar ou de sites úteis, entre outros. Mas ainda fica exposto a essas vidas supostamente perfeitas, e isso eventualmente o incomoda. “Como muitas coisas na vida, é preciso selecionar o conteúdo digital que consumimos, identificando e deixando de acessar conteúdos e perfis que nos fazem mal, reduzindo o tempo de tela ou tentando ajustar os famosos algoritmos para aquilo que mais nos interessa. É o que tento fazer”, ensina.

Além dessas estratégias para driblar o “ideal de vida perfeita”, ele diz que também busca conversar e compartilhar experiências com os amigos. “Acredito que a partilha das vidas reais imperfeitas — necessariamente imperfeitas e comuns a todos nós — nos ajuda a criar uma rede de apoio e de referências para nos guiar e dar suporte nas variadas situações por que passamos”, destaca.

O estudante Daniel Fagundes engrossa o coro contra a busca pelo ideal irrealizável. “Isso parece que já está no nosso subconsciente. Às vezes, nem percebemos, porque estamos expostos a esse conteúdo o tempo todo, na internet, na televisão… É difícil driblar”, diz, ao se referir às redes sociais, nas quais se publica apenas o momento feliz e bonito. Mesmo assim, ele também busca alternativas para não ser tão afetado por isso. “Não sigo influenciadores que apenas mostram a vida deles; procuro pessoas que tenham algum conteúdo, que deem dicas sobre algum tema, que acrescentem algum conhecimento”, afirma.

Daniel também destaca que é preciso ter o discernimento de que aquele dia a dia apresentado nas redes sociais mostra somente um recorte do real. “Isso ajuda a reduzir a ansiedade e não buscar ter uma vida igual àquela que estamos vendo”, aconselha. 

Daniel só segue influenciadores que agregam conhecimento | Foto: Arquivo pessoal

 Curvas

De acordo com Josiplessis, para amenizar a influência das redes sociais quanto à felicidade tóxica, é preciso vivenciar cada circunstância da vida, entendendo que ela é feita de fases — e algumas delas serão mais difíceis. Ou seja, é algo que deve ser encarado como uma parte natural da trajetória humana. “Outra saída é diminuir o tempo de tela e se dedicar a outras atividades, de preferência ao ar livre, como praticar atividades físicas, fazer programações em grupo e socializar com amigos e familiares. Tudo na vida real, de forma presencial. Precisamos fazer coisas que nos dão prazer. Cozinhar, brincar com crianças ou com animais de estimação, fazer trabalhos manuais, enfim, tudo o que nos conecta com nós mesmos”, orienta.

A psicóloga também enfatiza que a felicidade não é uma linha contínua, mas um caminho cheio de curvas, em que há momentos felizes e outros não tanto. “Viver feliz o tempo todo é paranoico, algo que está fora do que chamamos de saúde mental saudável. O natural é que a gente sinta tristeza, raiva, frustração e passe por perdas na vida. Que saibamos superar isso para, nos momentos bons, usufruir e aproveitar”, conclui.

Além da necessidade de sempre parecer bem, outra exigência atual que também pode causar adoecimento mental é a busca excessiva pela produtividade. “A pessoa se sente compelida a dizer que está sempre no modo trabalho, produtivo, trabalhando intensamente. Não é permitido dizer que está num ritmo menos acelerado, porque isso não cai bem, não dá like. O que engaja são as vidas ideais, num padrão fora do natural, do humano. Ou seja, há várias armadilhas, muitas das quais são vendidas via redes sociais. E nós estamos sendo presas fáceis delas”, alerta. 

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 20 de outubro de 2024.