Recentemente, um termo tem ganhado evidência e gerado intenso debate no Brasil: “adultização”. Ele refere--se a uma aceleração forçada do desenvolvimento de crianças e adolescentes, fazendo com que adotem comportamentos e responsabilidades que não correspondem à sua faixa etária. O problema ganhou destaque após um vídeo do influenciador digital Felipe Bressanim, o Felca, viralizar nas redes sociais. Na publicação, que já ultrapassou 45 milhões de visualizações no YouTube, ele chama atenção para a exposição e a exploração de menores na internet, exemplificando-as nas práticas de outro influenciador, o paraibano Hytalo Santos — que foi preso posteriormente, em 15 de agosto, na Grande São Paulo. Mas, embora as redes sociais acabem por potencializá-lo, o problema da “adultização” vai muito além disso.
Trata-se de um fenômeno preocupante, que afeta uma etapa fundamental do desenvolvimento humano: a infância. Uma fase marcada por descobertas e aprendizados que precisam respeitar o tempo e a maturidade de cada criança. Quando isso é acelerado, geram-se consequências emocionais, sociais e cognitivas que podem impactar até a vida adulta. A psicóloga Júlia Tavares explica o conceito. “Isso ocorre quando meninos e meninas passam a assumir papéis, responsabilidades ou preocupações que não correspondem à sua etapa de desenvolvimento. Por exemplo, quando uma criança usa roupas ou tem comportamentos que não são adequados à sua faixa etária, quando torna-se confidente dos pais em questões conjugais, tudo isso é ‘adultização’”, define a especialista, destacando que o fenômeno integra um processo em curso há muito tempo.
“Ele envolve muitas outras questões que, antes, a gente não observava tanto ou até normalizava e que, agora, vieram à tona. É uma realidade extremamente preocupante e os pais precisam estar atentos”, ressalta. Entre os efeitos sobre crianças e adolescentes, Júlia aponta que a “adultização” gera sobrecarga emocional e ansiedade, devido à busca por corresponder às expectativas e às emoções para as quais os menores ainda não têm repertório. “Precisamos compreender que, mesmo que uma criança mostre-se muito inteligente e madura, do ponto de vista cognitivo, não tem repertório emocional”, alerta.
Essa maturidade só vem com o tempo e o aprendizado em lidar com sentimentos, como o de ser julgado e frustrado, situações que podem ser precipitadas pelas redes sociais. “Os pais precisam ter essa responsabilidade. A criança tem necessidades emocionais que devem ser preservadas, como segurança, proteção e limites reais”, esclarece Júlia.
Ainda sobre as redes, ela uma tendência de se transformar a infância em vitrine: os menores viram pequenos influenciadores, expostos em excesso e também criando, nesses meios, uma relação profissional. “Esse processo não é apenas uma escolha individual da criança ou do adolescente, mas é fruto da própria sociedade, que o valoriza com as curtidas, seguidores e retorno financeiro. E isso é um trabalho. O menor tem que gravar, gravar de novo e criar cada vez mais conteúdos que gerem engajamento. Parte de seu tempo é roubado por isso”, salienta a psicóloga, lembrando os riscos de assédio aos quais a criança estará exposta com a divulgação intensa de sua imagem.
Estímulos podem causar puberdade precoce, alerta médica
O uso de produtos que não são adequados para a idade das crianças, além de sua exposição a músicas e vídeos indevidos, também podem influenciar o desenvolvimento de uma puberdade precoce. Isso acontece quando essa fase do desenvolvimento ocorre antes do esperado, ou seja, antes dos oito anos, nas meninas, e dos nove anos nos meninos. As causas do problema são diversas, incluindo algumas doenças, mas, segundo a endocrinologista pediátrica Taís Dantas, a maioria das ocorrências resultam de influências externas e poderiam ser evitadas pela mudança de hábitos.
“Cerca de 70% dos casos nascem dos estímulos e produtos a que as crianças são expostas. E não estou dizendo que todo mundo quer fazer o mal; às vezes, as pessoas não sabem e pensam que está tudo bem, se a menina gosta de maquiar-se, de usar tal item para o cabelo, e normalizam isso”, aponta. Segundo a médica, nascemos com os órgãos ligados à sexualidade “adormecidos” e eles evoluem apenas no momento certo. Porém, devido, em grande parte, às práticas sociais, além da ação de disruptores endócrinos — substâncias químicas que interferem na função hormonal e no sistema endócrino —, hoje, os casos de puberdade precoce tornam-se cada vez mais comuns. Nesse contexto, de fato, o que as crianças consomem em plataformas digitais, como virais dançantes de TikTok, influencia o problema.
“Menores usando roupa curta, esmalte, maquiagem, tudo é muito antecipado”, observa Taís, detalhando que esse tipo de estímulo faz o corpo interpretar que chegou a puberdade.
Supervisão
A advogada Deborah Henrique é mãe de um menino de 10 anos, Ariel. Ela conta que, apesar de seu filho não ter perfil em nenhuma rede social, usa a internet para jogos e streaming. Desde os sete anos, ele tem um celular próprio. Mas, contando com recursos do próprio aparelho, Deborah monitora e limita o tempo de acesso do filho e o que ele consome. “Acompanhamos isso pelo aplicativo Family Link, nativo do Google”, conta a advogada, explicando que a ferramenta possibilita, aos pais ou responsáveis, bloquear e desbloquear os dispositivos das crianças.
“O celular de Ariel é ligado ao meu. Ele não pode baixar aplicativos ou acessar conteúdos sem que eu permita”, frisa Deborah, relatando que o filho entende e respeita as regras ensinadas. Ela também diz não ouvir músicas com conotação sexual e evita assistir a filmes impróprios para a idade de Ariel, na presença do filho, acrescentando que o mantém em uma escola particular com visões e práticas alinhadas às de sua família.
Além de reconhecer que as redes sociais geram efeitos com os quais as crianças não são capazes de lidar, como advogada, Deborah salienta que a exposição e a exploração da imagem de menores nesses espaços pode levar à responsabilização de seus responsáveis, sujeitos a pena de detenção de seis meses a dois anos, conforme o artigo 232 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) — “submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento”. “Tem gente que filma a criança defecando, tomando banho, passando por algum constrangimento, faz piada com ela. Tudo isso pode ser tipificado como crime. Trata-se de uma exploração, pois os pais detêm o poder familiar sobre aquela criança, e isso gera uma responsabilidade para com ela. A criança deve ser respeitada em toda a sua integridade, física e psicológica”, enfatiza.
Novas leis definem diretrizes para coibir práticas em plataformas
Com a repercussão gerada pelo vídeo de Felca, a “adultização” ganhou espaço no debate político. O Projeto de Lei no 2.628/2022, chamado de “PL da Adultização” ou “ECA Digital”, foi aprovado recentemente no Senado Federal, após ter passado pela Câmara dos Deputados. O texto estabelece diretrizes para a segurança digital e a prevenção de crimes contra crianças e adolescentes nesses ambientes, além de definir obrigações para as plataformas. A proposta ainda exige mecanismos mais confiáveis para verificação da idade dos usuários das redes — o que hoje é feito apenas com base em autodeclaração. O PL segue para sanção presidencial.
No estado, a Assembleia Legislativa da Paraíba (ALPB) também aprovou legislação sobre o tema. O Projeto de Lei no 4.764/2025, denominado de “Lei Felca”, visa prevenir e coibir práticas, condutas e conteúdos que promovam ou incentivem a “adultização”. Outras propostas sobre o tema tramitam na Casa, incluindo um pedido de realização de sessão especial para debater o problema.
Já a Justiça do Trabalho, em decisão liminar proferida na última quarta-feira (27), pela 7a Vara do Trabalho de São Paulo (SP), determinou que o Facebook e o Instagram estão proibidos de permitir ou tolerar a exploração de trabalho infantil artístico, em suas plataformas, sem prévia autorização judicial. O descumprimento da medida pode acarretar multa diária de R$ 50 mil por criança ou adolescente encontrado em situação irregular. O Ministério Público do Trabalho (MPT) e o Ministério Público de São Paulo (MPSP) também pedem R$ 50 milhões de indenização por danos morais coletivos, além da adoção de medidas de controle nas redes, como a implantação de filtros que identifiquem conteúdos com crianças ou adolescentes sem alvará judicial e o exijam. Cabe recurso.
Para a psicóloga Júlia Tavares, as estratégias para mudar o cenário de “adultização” infantil envolvem a educação digital e exigem o engajamento de toda a sociedade, sobretudo dos pais e responsáveis. “É preciso gerenciar o que essa criança vê, ter um horário de acesso regrado e manter o diálogo para desenvolver limites saudáveis. Deve haver o incentivo à brincadeira e os pais precisam ter tempo de qualidade com seus filhos. O exemplo parental é muito importante; os filhos aprendem mais com o que os pais fazem do que com o que eles dizem”, orienta. Ela pontua ainda que, embora a infância não seja vivenciada de forma uniforme, devido às diferenças sociais e culturais, essa fase precisa ser vivida e respeitada.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 31 de agosto de 2025.