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construções abandonadas

Sonhos convertidos em drama

publicado: 24/03/2025 09h29, última modificação: 24/03/2025 09h29
Problemas envolvendo empreendimentos em obras geram prejuízos financeiros e psicológicos para adquirentes
2025.03.20 Prédios abandonados Residencial Liege © Leonardo Ariel (5).JPG

Residencial Liége, localizado no Altiplano, prometia ser o edifício mais alto da capital, mas está com obras paradas desde 2017 | Foto: Leonardo Ariel

por João Pedro Ramalho*

Em junho de 2017, o pai da enfermeira Julianne Santos, o engenheiro agrônomo José, de 72 anos, decidiu investir em um presente para as duas netas, filhas da profissional de saúde: um apartamento no condomínio Residencial Mar de Tiberíades, em construção no bairro Brisamar, em João Pessoa. Para isso, ele sacou o dinheiro do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e assinou um contrato com a Imagem Construções, responsável pela edificação. A expectativa era que as obras fossem concluídas em até três anos, podendo, a depender da necessidade, durar mais seis meses.

Perto do fim desse prazo, em fevereiro de 2020, seu José uniu-se a outro de seus filhos e adquiriu, no mesmo prédio, um segundo apartamento, que deveria ser entregue entre fevereiro e agosto de 2022. As obras, contudo, foram interrompidas em 2021 — e os adquirentes do condomínio foram relegados a uma espera que, ainda hoje, perdura. “Quando a gente fala sobre o investimento que o meu pai fez e ainda não recebeu, ele fica muito triste, reclama e diz que não era para ter feito isso. Os nossos maiores prejuízos são psicológicos e financeiros, porque a gente pagou um valor por uma obra que está parada e não sabemos o que vai acontecer depois”, lamenta Julianne.

O drama vivido pela família Santos não é exclusivo do condomínio em Brisamar. Na capital paraibana, relatos de obras abandonadas tornaram-se frequentes nos últimos anos, sendo um dos mais famosos o Residencial Liége. Localizado no bairro Altiplano Cabo Branco, o arranha-céu de 50 andares prometia ser o mais alto da cidade, mas sua construção está parada desde 2017. Segundo o advogado Daniel Braga, representante da Associação dos Adquirentes do Imóvel do Residencial Liége, a Construtora GBM interrompeu o empreendimento devido a problemas decorrentes de um empréstimo feito ao Banco do Brasil, cujos juros ultrapassaram o que a empresa conseguia pagar.

Seguiram-se, então, anos de uma disputa coletiva na Justiça. Por decisão judicial, a Construtora GBM foi destituída e a associação obteve a emissão da posse da obra, mas a incorporadora ainda tentou repassar aos compradores todas as dívidas relativas às obras, incluindo a que foi contraída no Banco do Brasil. A solicitação, todavia, foi negada. Agora, o suplício parece estar perto do fim. “Nós estamos com uma assembleia marcada para o dia 10 de maio, na qual retomaremos os diálogos com vistas à retomada das obras. É preciso entender qual adquirente vai aportar mais dinheiro e quem vai querer ser ressarcido, para que nós possamos, enfim, buscar caminhos para obter um novo financiamento ou para repassar essa obra a um investidor ou a uma construtora”, diz Daniel.

Isolados

Construção no Brisamar foi interrompida em 2021 | Foto: João Pedrosa

Além da espera que ultrapassa o tempo razoável, um problema comum aos adquirentes desses imóveis é a falta de comunicação com as construtoras. Julianne conta, por exemplo, que até hoje não recebeu uma explicação sobre o motivo que fez a Imagem Construções interromper as obras. Ela também vem tentando ligar para o número de telefone passado pela empresa, mas as ligações não se completam. O único contato acontece por meio de conversas entre a mãe da enfermeira e a esposa do proprietário da construtora, pelo aplicativo WhatsApp. Ainda assim, são diálogos esparsos e pouco produtivos. “A última mensagem de minha mãe foi enviada no dia 19 de fevereiro deste ano, mas a mulher do proprietário respondeu apenas que falaria com o marido. Antes, em 4 de dezembro passado, não houve resposta, até que, em 12 de dezembro, ela disse que passaria para o esposo. Anteriormente, em 12 de abril de 2024, ela informou que o marido estava se organizando para terminar a obra. Tudo isso somente por mensagem. Por ligação, mesmo, a gente não consegue”, relata Julianne.

Força maior

“Diferentes situações podem levar ao abandono de obras da construção civil, como falta de documentação ou condições adversas de mercado ou financeiras — como no Edifício Liége”, explicou Sérgio Oliveira, diretor-executivo do Sindicato da Indústria da Construção e do Mobiliário do Estado da Paraíba (Sinduscon-PB).

A advogada Sandra Fernandes, especialista em Direito e Processo Civil, enumera outros fatores, como dificuldades operacionais, problemas judiciais e irregularidades ambientais ou urbanísticas. Ela esclarece ainda em que circunstância a interrupção é legal. “Uma construtora pode suspender uma obra temporariamente por força maior ou caso fortuito, como desastres naturais e pandemias ou a suspensão da produção de concreto. Mas essa paralisação deve ser justificada e comunicada aos adquirentes; caso contrário, vai ser considerado descumprimento contratual”, ressalta.

Para Sérgio, casos como os vividos por Julianne e pelos clientes de Daniel não afetam a credibilidade do setor da construção civil na capital. “Há obras paradas em João Pessoa, mas o percentual é baixíssimo, talvez até irrelevante, diante da quantidade de empreendimentos. Mas as experiências negativas desses casos reverberam com muita intensidade e prejudicam o mercado”, aponta. O diretor-executivo ressalva, ainda, que o Sinduscon-PB não tem ingerência administrativa sobre as empresas e que busca conscientizar os filiados para que atuem de forma legal e prudente, ao planejar os seus empreendimentos.

A reportagem do Jornal A União tentou entrar em contato com a construtora Imagem, por meio dos telefones publicados nas suas redes sociais e no seu site, para entender quais os motivos para a interrupção das obras e para a dificuldade de comunicação com os adquirentes. Também buscávamos saber quando as construções serão retomadas. Porém, assim como ocorreu com a família de Julianne, as ligações não tiveram retorno.

Cliente deve pesquisar sobre a empresa antes de firmar contrato

Quem deseja realizar o sonho da casa própria ou adquirir imóveis como uma forma de investimento deve tomar algumas precauções, a fim de minimizar os riscos de um calote. A advogada Sandra Fernandes orienta a, inicialmente, verificar o patrimônio e o histórico da construtora, tanto por meio de relatos de outros compradores quanto pesquisando ações judiciais e reclamações em órgãos de defesa do consumidor, como também consultando a situação financeira da empresa na Junta Comercial e na Receita Federal.

Já um mecanismo útil na elaboração do contrato é a opção pelo patrimônio de afetação, que separa os recursos da obra dos bens da construtora e garante a prioridade de ressarcimento aos consumidores em caso de falência da empresa. Por fim, é importante fiscalizar a incorporação. “Verifique se a construtora registrou o empreendimento no Cartório de Registro de Imóveis e certifique-se da matrícula do terreno, do projeto aprovado na prefeitura, do memorial descritivo e do alvará de construção. Todos esses documentos são vitais para quem não quer ter dor de cabeça”, complementa.

Caso o transtorno com uma obra interrompida se concretize, é necessário que o consumidor mantenha a calma, reúna as informações disponíveis e procure um advogado. Em seguida, a pessoa lesada pode optar por uma notificação extrajudicial, por uma denúncia em órgãos de defesa do consumidor ou, ainda, por uma ação judicial. Conforme explica Sandra, esse último cenário inclui, entre as suas possibilidades, a solicitação de rescisão contratual, com a devolução do valor pago, ou de cumprimento forçado do contrato — ambos possíveis, em uma ação coletiva —, além de danos morais e materiais e do pagamento de multas.

Os adquirentes do Residencial Mar de Tiberíades estão nos estágios iniciais dessa busca por justiça. Nas últimas semanas, um grupo formado por cerca de 10 pessoas começou a se mobilizar, chamando outros compradores para uma reunião, realizada na manhã de ontem. O objetivo foi conhecer o maior número possível de adquirentes e, assim, entender que caminhos serão trilhados a partir de agora. “Eu espero que o nosso dinheiro não seja perdido. A gente vai lutar para conseguir uma solução”, garante Julianne.

O que fazer
Se a construtora abandonar uma obra, o comprador pode:

• Contratar um novo empreiteiro para terminar a obra;
• Pedir compensação pelos custos extras;
• Pedir indenização por danos materiais e morais;
• Rescindir o contrato e pedir a devolução do dinheiro;
• Processar a construtora no juizado especial civil;
• Acionar o Procon.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 23 de março de 2025.