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Trabalhadores invisíveis e essenciais

publicado: 17/04/2023 13h38, última modificação: 17/04/2023 13h38
Fundamentais para a manutenção das cidades e da sociedade, milhares de profissionais atuam sem reconhecimento
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André Luiz é coveiro desde 2009 e afirma não ter vergonha do trabalho, muitas vezes visto como irrelevante por uma parcela da sociedade. Sem ele e sem todos os coveiros, os trâmites de sepultamento de pessoas não seriam completos - Fotos: Roberto Guedes
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Severino Ferreira, catador de lixo, carrega até 40kg durante, aproximadamente, seis horas de trabalho nas ruas da capital paraibana, contribuindo para a correta destinação de resíduos e a reciclagem do material
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por Taty Valéria*

Para onde vão todas as coisas que nós, cotidianamente, descartamos, perdemos ou, involuntariamente, precisamos deixar ir? A embalagem de bala descartada, erroneamente, na rua; o lixo que deixamos para que seja devidamente descartado; ou, com muita dor, pessoas amadas que se foram e precisamos nos despedir fisicamente.

Para todos os casos, existem pessoas que se encarregam de cuidar de tudo depois que fogem do nosso olhar. E, por isso, essas pessoas também estão fora do nosso olhar. Diuturnamente, milhares de trabalhadores acordam cedo para fazer tudo aquilo que não enxergamos, mas que são extremamente essenciais na construção coletiva da vida cotidiana em sociedade.

André Luiz Nascimento era operador de prensa quando surgiu a oportunidade de trabalhar num emprego considerado inusitado, mas que é exercido com muito orgulho, dedicação e profissionalismo desde 2009. Coveiro do Cemitério Senhor da Boa Sentença, em João Pessoa, André convive em meio a túmulos e considera seu ofício um dos mais essenciais à sociedade, mesmo que não seja lembrado ou, muitas vezes, visto.

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“Meu trabalho é muito importante porque eu sou quase um psicólogo”, afirma André, que já perdeu a conta das situações que teve de intervir durante algum sepultamento para amparar familiares e amigos em momentos de dor.

Mesmo tendo que lidar com problemas que não fazem parte de sua função, André Luiz faz parte de uma classe de trabalhadores que são essenciais na garantia do bem-estar social e no funcionamento das cidades, mas não são reconhecidos.

Assim como garis e catadores de materiais recicláveis, que desempenham um papel fundamental na gestão de resíduos sólidos, atuando na coleta, triagem, processamento e comercialização destes materiais e sendo responsáveis pela destinação de quase 90% do lixo reciclado no Brasil, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).  Mais de 800 mil pessoas executam a função no país como uma alternativa ao desemprego, de acordo com o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis.

Esse é o caso de Severino Ferreira, morador do município de Bayeux. Sozinho na sua missão diária, Severino carrega uma carroça que pesa, em média 40kg durante 6h diárias. O esforço rende até um salário mínimo por mês. “É um trabalho pesado, mas acho muito digno. Ajudo a deixar a cidade limpa e ainda consigo trabalhar de um jeito honesto”, finaliza com um sorriso no rosto, apesar do cansaço.

Maioria dos trabalhadores invisibilizados segue um perfil

Apesar de solitários e do pouco reconhecimento, boa parte dos profissionais é feliz por prestar serviços essenciais para a sociedade. Ainda assim, os trabalhadores podem desenvolver ou sofrer com transtornos psicológicos diversos.

Para Dandara Palhano, psicóloga clínica-organizacional e pós-doutoranda  pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), ainda existem outras observações importantes. Algumas características podem ser observadas com frequência, como a predominância de pessoas negras, com baixa escolaridade e baixo nível de poder aquisitivo que ocupam os trabalhos considerados essenciais, mas invisibilizados.

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“Além disso, é perceptível que há uma relação também com a cor da pele dos trabalhadores dessas áreas. Pode-se dizer que esses profissionais ‘acostumam-se’ a trabalhar dessa maneira, mas é impossível dizer que isso não afeta a sua saúde mental e a qualidade de vida no trabalho”, declarou a psicóloga.

Não é o caso de André Luiz e Severino Ferreira, mas Dandara Palhano afirma que trabalhadores que executam funções consideradas invisíveis pela sociedade podem desenvolver transtornos como ansiedade, depressão, insônia e cefaleia recorrente, “além das doenças crônicas mais comuns associadas ao trabalho e também à saúde mental, tais como diabetes e hipertensão”, completou.

Os profissionais podem, ainda, lidar com preconceito que, geralmente, aparece através de pessoas com maior escolaridade, nível econômico social e por racismo estrutural. “[Essas pessoas] consideram que ignorar determinadas funções é algo natural ou que essas pessoas não teriam se esforçado o suficiente, numa ilusão de meritocracia”, explica.

Apesar do trabalho insólito e pouco notado pela população em geral, o coveiro André Luiz afirma que nunca sofreu qualquer tipo de preconceito pela profissão que exerce e faz questão de reforçar o orgulho que sente por seu trabalho, especialmente porque foi naquele lugar insólito, que encontrou o grande amor da sua vida.

“Conheci minha atual esposa trabalhando no cemitério, eu coveiro, e ela zeladora. Temos um filho de nove anos, uma casa e uma família, porque eu ia ter vergonha?”, finalizou o coveiro.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 16 de abril de 2023.