por Alexsandra Tavares*
Muitos não conseguem ter qualquer explicação ou sentido para a morte, mas o significado dessa perda é nítido para quem recebe um órgão doado e consegue renascer. A partida de uma pessoa pode, nesse caso, representar a chance de um recomeço para outra. O estudante universitário, DJ e músico Marcelo Fontes Higino Júnior, 25 anos, não conhece a família que lhe cedeu as córneas para que ele voltasse a enxergar o mundo na sua plenitude. No entanto, Marcelo afirma que “ama essa pessoa” como se “ela fizesse parte de sua família”.
O sentimento é totalmente compreensivo, porque o estudante tinha menos de 30% da visão do olho esquerdo, e cerca de 60% do direito, devido a uma doença chamada ceratocone. Caso a cirurgia não ocorresse, ele corria o risco de enfrentar a perda progressiva da visão. E esse era um de seus principais temores, desde a infância. “Quando eu era criança e ficava no escuro, meu maior medo não era de monstro, mas de não voltar a enxergar, eu tinha medo de ficar cego. E com a doença, eu tinha chance de perder a visão”, revelou
Marcelo nasceu no Rio de Janeiro, mas desde 2014 passou a morar com os pais em João Pessoa. Em 2018, ele foi diagnosticado com a ceratocone, mas sempre contava com o auxílio dos pais. Porém, em 2020, tanto o pai como a mãe tiveram que se mudar para o Macapá. Com a partida, a rotina do estudante ficou mais complicada, já que ele não conseguia fazer tarefas simples do dia a dia. “Eu tropeçava e caía demais, não podia dirigir, nem cortar a unha do pé ou fazer a barba”, comentou.
Uma das pessoas que lhe deu apoio foi a namorada, Caroline Figueiredo. “Ela foi minha família aqui”, revelou o estudante. Após dois anos e meio na fila de espera pelo transplante de córnea, finalmente, no ano passado, ele recebeu a notícia de que havia um doador compatível. “Recebi o aviso por telefone numa quarta-feira e a cirurgia seria na sexta-feira. Eu perguntei se era verdade e comecei a chorar muito. Telefonei para meus pais, minha mãe atendeu e eu só chorava, sem conseguir falar direito. Então, eu comecei a repetir que tinha chegado uma córnea, ela entendeu e começou a chorar também e passou o telefone para o meu pai. Foi um dos melhores dias da minha vida”, declarou.
A mãe de Marcelo comprou uma passagem às pressas para João Pessoa e acompanhou o filho durante a cirurgia e no período pós-transplante. Apesar da cicatrização ter sido rápida, Marcelo contou que os pontos cirúrgicos foram sendo tirados aos poucos e esse processo perdurou por cerca de um ano. Os primeiros três meses de recuperação foram os mais delicados, porque ele não podia fazer nenhum esforço físico, nem tarefa doméstica. “Foi um processo lento, mas prazeroso”, afirmou.
O transplante foi realizado no Hospital Visão e todo processo de captação do órgão e também o procedimento aconteceu via Sistema Único de Saúde (SUS). A única informação sobre o doador que ele teve foi de que era de um homem de 25 anos, do estado do Ceará. “Eu amo essas pessoas que tomaram a decisão de doar a córnea. Eu sinto muito amor e gratidão por elas. Acredito que o transplante de órgão significa você tirar de algo muito ruim, como a morte, algo muito bom, de retorno para a sociedade. Porque essa família entendeu que tem uma forma daquela vida continuar reverberando e se transformar numa bênção para outras pessoas”.
A córnea doada foi transplantada no olho esquerdo, o mais atingido pela ceratocone. No olho direito, foi feita uma cirurgia chamada Crosslinking, para fazer com que a doença estacione. “Agora, tenho vontade de viver e sonhar”, destacou Marcelo.
A vida em outro ritmo com um coração novo
Para Willis Pereira Evangelista, 61 anos, receber um novo coração representava tanto a melhora na qualidade de vida, já debilitada, quanto a possibilidade de continuar existindo. Ele foi uma das 94 pessoas transplantadas na Paraíba esse ano.
Willis sofria de miocardiopatia dilatada (coração crescido) e recebeu o novo órgão de uma família que doou o coração de um jovem que faleceu aos 20 anos. Com isso, a vida, no seu sentido mais restrito e também amplo da palavra, lhe foi restabelecida.
O caso de Willis Pereira é histórico na Paraíba, pois ele se submeteu ao primeiro transplante cardíaco realizado em uma unidade de saúde pública no Estado. No dia 20 de abril, menos de um mês após o procedimento, ele recebeu alta. “Eu nasci de novo”, frisou Willis.
Em casa, Willis deverá retomar gradativamente à rotina normal. Mas a sua jornada até chegar a esse final feliz foi longa. “Se não fosse essa cirurgia, ele iria morrer. O coração dele estava muito fraco, com os batimentos bem abaixo do normal. Agradecemos a Deus por tudo o que ele fez conosco, porque Ele é bom e cumpre com o que promete”, afirmou a esposa de Willis, Sueli Pereira Evangelista.
“Ter a chance da cirurgia é um renascimento”
No dia 9 de janeiro deste ano, a estudante Ana Clara Rodrigues da Silva, 16 anos, foi submetida a um transplante de rim no Hospital Nossa Senhora das Neves, em João Pessoa. Assim, acabava a espera de quase dois anos pelo órgão, e iniciava uma nova etapa em sua vida. “Depois de esperar tanto, chegou o dia de você se livrar daquela máquina, sair daquilo tudo e reviver. Isso é incrível, inexplicável”, contou.
A máquina a qual ela se referia era o equipamento utilizado nas sessões de hemodiálise. A jovem estudante é portadora de lúpus, doença sistêmica e autoimune, que desencadeou a nefrite, inflamação no rim. Com isso, o órgão ficou incapaz de funcionar sozinho e Ana Clara, que mora em Mogeiro, teve que se deslocar três vezes por semana para João Pessoa para fazer hemodiálise. O processo era necessário, enquanto ela aguardava por um transplante.
“Fazer hemodiálise atrapalhou muito a minha vida social e escolar”. Apesar dos momentos de desmotivação e desesperança, ela frisou que a força dos pais a faziam retomar a fé. “Eles estavam sempre me motivando e me passavam confiança”.
Em um dos dias em que Ana Clara havia acabado de chegar em casa após uma sessão de hemodiálise, ela recebeu a tão sonhada notícia de que havia chegado um doador para ela. “Com o telefonema, perguntei: É verdade, é sério? Eu simplesmente não acreditava”.
Mesmo sem saber quem foi o doador, ela fala que é extremamente grata ao gesto da família que lhe proporcionou mais qualidade de vida. “Por causa do sim dessa família eu posso realmente viver a minha vida, de verdade. Ter a chance de fazer a cirurgia representa um renascimento”.
PB é o terceiro lugar no Nordeste em doação
Na Paraíba, 503 pessoas estão à espera da doação de um órgão. A maior demanda é por córnea (295), depois vem rim (187), fígado (17) e coração (quatro), segundo dados da Central de Transplantes da Paraíba. A boa notícia é que mais famílias vêm se conscientizando em ajudar quem está na fila de espera e a Paraíba ocupa atualmente o terceiro lugar do Nordeste em números de doações de órgãos, perdendo apenas para o Ceará (1º lugar) e Pernambuco (2º lugar).
Segundo a Associação Brasileira de Transplante de órgãos (ABTO), o número de doadores nos últimos três anos aumentou 271% no Estado. No ano passado, foram registradas 26 doadores efetivos, enquanto em 2018 fora apenas sete. Com a maior disponibilidade de doadores, o número por milhão de população (pmp) saltou de 1,7 para 6,4.
A chefe do Núcleo de Ações Estratégicas da Central de Transplantes da Paraíba, Rafaela Carvalho, atribuiu o avanço ao trabalho contínuo de sensibilização do Governo do Estado e da Secretaria de Saúde, em apoiar e incentivar a doação de órgãos. “Tudo que a Central de Transplantes precisa para tornar o serviço sustentável, viável, cem por cento SUS (Sistema Único de Saúde), o Governo e a Secretaria de Saúde do Estado não medem esforços para concretizar. Saímos de um cenário preocupante para o terceiro lugar no Nordeste em doação de órgão e isso também é resultado de um trabalho de equipe”, frisou Rafaela.
Outro ator imprescindível nesse processo é o doador. “Se não existisse a autorização desses familiares para a doação de órgãos, não conseguiríamos mudar a vida das pessoas por meio do transplante. Esse é um dos gestos mais nobres do ser humano, porque diante de tanta dor e muitas vezes de desespero pela perda, às vezes prematura, de um ente querido, ele pensa no próximo, em uma família que nunca viu”.
Rafaela contou que o processo de doação não é algo fácil, porque quando a família aprova a retirada de um ou mais órgãos, o paciente doador vai permanecer na unidade de saúde por pelo menos 12h a mais, até que se finalize todos os trâmites necessários para que seja feito o transplante para o paciente que espera a cirurgia. “Quando penso nesse ato de empatia eu digo que o ser humano ainda tem jeito”, declarou.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 01 de maio de 2022