O uso indiscriminado de antibióticos tem prejudicado a eficácia desse tipo de medicamento, de acordo com o Relatório Global de Vigilância da Resistência aos Antibióticos 2025, divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Os dados expõem um aumento na resistência bacteriana ao redor do mundo, que cresceu 40% de 2018 a 2023; como consequência, há uma dificuldade maior para tratar infecções.
No Brasil, esses números recebem suporte de uma pesquisa da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), segundo a qual, no último ano, 24% da população utilizaram antibióticos por conta própria, majoritariamente para tratar doenças como dores de garganta, gripes e resfriados, as quais têm origem viral e não demandam o uso desse tipo de medicamento. A pesquisa também aponta que 55% dos entrevistados afirmaram não saber que o uso inadequado de antibióticos pode levar à resistência bacteriana — um indicador de que uma das principais causas do problema é a desinformação acerca do assunto.
Para a médica Joice Muniz, que atua em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) do estado, “o que acontece, sobretudo em cidades do interior, é que muitas farmácias dispensam antibióticos sem a necessidade de receita”. Ela conta que muitos pacientes utilizam a internet para pesquisar sintomas e chegam à consulta citando uma patologia específica, pedindo antibióticos ou relatando uma automedicação que não surtiu efeito.
Outro problema, citado pelo infectologista Fernando Chagas, é quando o paciente pensa que sintomas semelhantes indicam a mesma doença. “Muitas vezes, acontece de o médico passar o tratamento antimicrobiano, o paciente utilizar pelo tempo correto e sobrar remédio no final do tratamento. Ele guarda essa medicação e, no futuro, quando tem outro processo inflamatório, acredita que o mesmo antibiótico vai resolver, mas não é assim que funciona”, comenta.
O médico explica que, ao se automedicar, o paciente não arrisca apenas a própria saúde, como também a das pessoas com quem convive. Isso porque, quando um paciente toma antibiótico de forma desnecessária ou interrompe o uso da medicação prescrita, ele seleciona no próprio organismo as bactérias mais resistentes. Os patógenos multiplicam-se, imunes aos efeitos do remédio, e provocam uma nova infecção. Resistentes aos antibióticos comuns, essas bactérias podem ser passadas para outras pessoas e, com isso, torna-se necessário hospitalizar o paciente. “Vejo muita gente sendo internada com infecções urinárias leves, por exemplo. Normalmente, nesses casos, a pessoa não precisaria de internação, mas, graças ao uso indevido de medicamentos, o remédio para tratar aquela infecção agora precisa ser administrado de forma venosa”, diz Fernando.
De acordo com Joice Muniz, a busca maior é pela prescrição de antibióticos ofertados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Entretanto, toda medicação tem efeito colateral e, portanto, cabe ao profissional de saúde fazer escolhas individuais para cada paciente. “Em caso de automedicação, as pessoas podem ter reações alérgicas ou intoxicações, uma interação medicamentosa que pode aumentar ou reduzir o efeito dos remédios e, ao oferecer alívio dos sintomas, mascarar uma doença grave, atrasando a procura do tratamento adequado”, adverte. Além disso, alguns remédios são voltados para públicos específicos: o antimicrobiano que trata um jovem, por exemplo, pode causar convulsões em um paciente idoso, que tem um organismo diferente.
“Acredito que o aumento do acesso à informação gera mudança, na qual o paciente quer se tornar seu próprio prescritor”, Joice explana, referindo-se à maior disponibilidade de conteúdos produzidos em redes sociais, por exemplo. “Contudo, mesmo com acesso à informação, apenas um profissional habilitado consegue avaliar o custo-benefício de cada medicação, além de individualizar o uso de antibioticoterapia”.
Pandemia
O infectologista Fernando Chagas observa que o recorte temporal analisado pelo relatório da OMS — de 2018 a 2023 — abrange a pandemia de Covid-19, ocorrida de 2020 a 2023. Segundo ele, na ocasião, muitos médicos acabaram prescrevendo antibióticos de forma inadequada, principalmente a azitromicina e a piperacilina com tazobactam, porque, ao colocar na balança, decidiam que o risco de administrar a medicação era melhor do que perder o paciente.
“Acreditava-se que podia haver uma infecção bacteriana secundária, que a Covid detonava o pulmão de um paciente e uma bactéria aproveitava para infectá-lo. Isso nem sempre era verdade, mas, com tantos pacientes em situação grave, não havia espaço para erro. Era melhor entrar com o antimicrobiano e descobrir que não era uma bactéria, do que não utilizar e ver o paciente morrer”, explica o médico. Ele acrescenta que muitas pessoas utilizaram a azitromicina em casa, porque a ideia equivocada de que ela ajudaria a aumentar a imunidade se espalhou. “Então, o período da Covid, provavelmente, foi quando nós mais selecionamos bactérias multirresistentes em todo o mundo”, conclui.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 19 de novembro de 2025.