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Pé na estrada

Vida e magia sob a lona do circo

publicado: 09/01/2023 12h37, última modificação: 09/01/2023 12h38
Circenses levam alegria, enquanto dividem a rotina da montagem da estrutura, treinos e afazeres domésticos
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Viver num circo é não ter residência fixa e construir, a cada apresentação, um mundo mágico, com o objetivo de não deixar o espetáculo parar e, assim, manter viva a milenar tradição circense - Foto: Foto: Edson Matos

Ser circense é um desafio diário. Sem residência fixa, vivendo em trailers e carretas, as viagens são incontáveis e as cansativas mudanças compõem a rotina de quem trabalha para fazer o outro sorrir. A educação das crianças se divide pelos mais variados recantos do país. Cuidar da saúde exige jogo de cintura, sem contar com toda a logística para gerenciar o espaço de diversão e entretenimento. Mas, ser circense é essencialmente paixão, amor, dedicação e, mesmo com todos os obstáculos, a palavra desistir está fora do dicionário.

“A vida no circo não é fácil, mas é mágica e eu não trocaria por nada nesse mundo”. Com essa frase, Andreza Alvarado, uma das proprietárias do Circo Mundo Mágico, que é de Minas Gerais e está em João Pessoa, define bem o que é ser do circo. “Ser circense é amor mesmo, porque para estar nessa vida, andando de um lado para o outro, tem que gostar muito. Para mim, ser circense é amor porque tem que ter muito amor para enfrentar essa batalha diária”, resume.

Ela admite que não é uma vida fácil, lamenta que ainda é pouco valorizada e compara a uma empresa que precisa ter documentação, inspeção de Bombeiros, Vigilância Sanitária, Meio Ambiente, alvarás. Toda vez que o circo sai em viagem, é como se pegasse uma empresa, colocasse todos os funcionários dentro e ficasse de 30 a 60 dias em cada lugar, tendo que documentar, legalizar e construir tudo.

Por trás dos espetáculos que envolvem contorcionistas, malabaristas e mágicos, entre outros artistas, os integrantes do circo vivem numa comunidade em que todos contribuem em prol do sucesso coletivo

“Perante toda a logística que o circo tem e a grandeza cultural que é na vida das pessoas, eu acho que a parte mais difícil é essa desvalorização. Muitas vezes, chegamos na cidade e não tem o espaço adequado para montar”, ressalta.

Do ensaio ao espetáculo
Ensaios, verificação dos aparelhos de trabalho, malabarista confere seus acessórios, mágico testa suas magias. Cada um cuida do número que vai apresentar. Mas, além do espetáculo, a rotina do circo é semelhante à de uma residência, afinal de contas, aquele é o lar de 34 pessoas, das quais seis crianças, de famílias tradicionais circenses.
Alguns moram em trailer, outros em motorhome. “Lavamos roupa, fazemos comida. Em época de aula, levamos as crianças para a escola, vamos ao mercado. Cuidamos dos ensaios, limpeza e manutenção do circo”, enumera Andreza Alvarado.

Até a hora de entrar em cena, há uma sequência de ações. Além de conferir os aparelhos, tem a maquiagem, o figurino. E antes de cada espetáculo, por mais experiência que cada um possua, sempre bate um frio na barriga. “Todos os dias, o nervosismo toma conta, pois o espetáculo é ao vivo. Então, tudo tem que sair perfeito”, comenta.

Talento de sobra, inclusive fora do picadeiro

Andreza faz parte da sexta geração do Circo Mundo Mágico. Nascida em meio a espetáculos, ela conta que já realizou todas as atividades no picadeiro. Foi trapezista, bailarina, mágica. Hoje está no setor burocrático, assumindo a função de seu pai que, idoso e com problema de visão, não conseguiu mais dar conta do trabalho. Ela garante não sentir falta de estar no picadeiro e diz que o trabalho de cada um é fundamental para o circo.

As crianças que, assim como Andreza, nasceram no circo e crescem nesse meio, participam quando querem. Aos poucos, vão aprendendo a postura no picadeiro, como se apresentar. Já os adultos, quase sempre compõem algum número, mas alguns jamais farão, por exemplo, atividades na altura. “É como na vida, temos que nos encaixar onde nos sentimos bem”, comenta.

Por trás dos espetáculos que envolvem contorcionistas, malabaristas e mágicos, entre outros artistas, os integrantes do circo vivem numa comunidade em que todos contribuem em prol do sucesso coletivoA filha mais velha da circense tem 16 anos e não gosta do picadeiro. “Quando era menorzinha, tinha uma contorcionista chamada Soraya por quem ela era apaixonada. Começou a copiar e até achei que se tornaria uma contorcionista. Quando anunciavam a Soraya, ela saía correndo, de fralda, e ficava olhando na frente do palco”, lembra Andreza. “Quando ficou maiorzinha, ela dizia que queria ser contorcionista. Fizemos a banquilha e ela começou a se apresentar. Aos 10, 11 anos, começou a demonstrar que não era a praia dela. Por outro lado, ajuda na parte burocrática, almoxarifado, mas picadeiro não é com ela”. 

 

“Enterra o morto”

A vida itinerante do circo exige que a lona seja montada e desmontada inúmeras vezes. Numa delas, aconteceu uma história engraçada com a equipe do Mundo Mágico. Alguns ferros de sustentação da lona são chamados de pau de roda, tem as estacas, retinida – uma espécie de corda – acessórios que só quem é de circo conhece. Entre eles, a parte que sustenta a lona principal é chamada de morto. Quando o terreno é mais mole, as estacas-pino não dão a sustentação adequada. Nesses casos, tem que ser feito um tipo de estaqueamento chamado morto. Certa vez, o grupo chegou a uma cidade entre 23h e meia-noite, e começou a descarregar o material e a montar a estrutura para o espetáculo. Eles comentavam que deveriam “enterrar o morto” para que, no dia seguinte, na hora de abrir a lona, o trabalho estivesse adiantado já que era um período chuvoso.  

“E começaram a dizer: vamos enterrar o morto. Os vizinhos ouviram. Imagine. Chega um monte de gente falando para enterrar o morto. Pois, daqui a pouco, foram umas 10 viaturas de polícia chegando, cercando todo mundo, perguntando cadê o morto”, relatou Andreza.

Os policiais disseram ter recebido uma denúncia de que o pessoal do circo estava enterrando um morto. “Foi uma confusão. Em seguida, os ‘adultos’ explicaram o que era o morto e que estavam fazendo buracos para enterrar”, conta Andreza. 

Morte dos avós

Otaviano, o Palhaço Cheiroso, e Mafalda, avós de Andreza Alvarado, morreram no circo, ambos no mês de julho, com a mesma idade, aos 84 anos, e na mesma cidade, Papagaios, em Minas Gerais. Apenas os dias foram diferentes. Primeiro, morreu o avô, dentro da carreta onde morava. Ele almoçou, sentou para ver TV, teve um infarto fulminante e morreu ali. Dois anos depois, a avó.

O lugar era uma cidade onde era muito boa para o circo, tinha um bom público. Porém, após a morte do marido, a avó Mafalda não queria ir para lá porque a cidade traria lembranças tristes. Um dia ficou acordado que iriam para uma cidade chamada Maravilhas, a 15 quilômetros de Papagaios. No entanto, como iria acontecer uma festa justamente no terreno onde seria montado o circo, só seria possível ir para lá em duas semanas.

Ao perceber que a equipe ficaria parada nesse período, a avó mudou de ideia e decidiu ir para Papagaios. O circo chegou numa terça-feira e estreou na sexta-feira. A avó fez a bilheteria, saudável, e foi embora para o ônibus onde morava.

Um familiar dormia com a idosa para que não ficasse sozinha. A prima que ficaria naquela noite avisou que iria lanchar e voltaria para dormir. Quando retornou, a idosa estava caída ao lado da cama, já morta. Ela foi enterrada na cidade, no mesmo túmulo que o marido. “São coisas que não têm explicação”, lamenta Andreza.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 8 de janeiro de 2023.