Controlar o dinheiro, danificar ou subtrair pertences da vítima e reter seus documentos pessoais. Essas condutas — muitas vezes, naturalizadas no cotidiano de relacionamentos abusivos — configuram a chamada violência patrimonial, que, além de comumente vitimar idosos, é uma das formas de agressão doméstica contra a mulher tipificadas na Lei Federal nº 11.340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha.
De acordo com dados divulgados pela Polícia Civil da Paraíba (PCPB), dos 4.568 inquéritos relacionados a violência doméstica instaurados no primeiro semestre deste ano, 298 deles correspondem a ocorrências da modalidade patrimonial. E, embora o número de processos investigativos contra agressão doméstica no estado tenha crescido 92,74%, na comparação com os registros do mesmo período do ano passado (2.370 inquéritos), o recorte de casos relativos a violência patrimonial demonstra uma queda de 47%, já que os primeiros seis meses de 2024 somaram 564 ocorrências desse tipo.
Na avaliação de Sileide Azevedo, delegada da PCPB e responsável pela Coordenação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher na Paraíba (Coordeam-PB), a redução nos números oficiais reflete o problema da subnotificação. “O aumento no número de procedimentos [referentes a violência doméstica], no geral, tem relação com o Pacote Antifeminicídio, que entrou em vigor no fim do ano passado. Crimes como o de ameaça tinham ação condicionada à representação da vítima; com a mudança na legislação, a vítima não pode mais escolher se quer instaurar o processo. Em relação à violência patrimonial, que é um tipo de violência nem sempre compreendido pela vítima, acontecem as subnotificações”, pontua Sileide.
Tendo em vista que essa agressão é, muitas vezes, cometida de maneira sutil, baseada em abuso de confiança, sua ocorrência pode, de fato, ser de difícil identificação por parte das vítimas.
Formas de domínio
Conforme explica Nayane Ramalho, advogada especialista em Direito Previdenciário, a violência patrimonial baseia-se em maneiras de exercer controle sobre o cotidiano da vítima, restringindo sua capacidade de agir de forma independente e aproveitando-se de eventuais vulnerabilidades em sua autonomia, como a questão das finanças. “No contexto das mulheres, essa prática entrelaça-se frequentemente com outras formas de abuso. Várias vítimas permanecem em ciclos de violência por não possuírem independência financeira e, muitas vezes, terem filhos pequenos”, ressalta a advogada.
Nesse sentido, o controle direto da renda obtida pela própria mulher, por parte de seu companheiro, também se configura como um tipo de violência patrimonial, como salienta a titular da Secretaria de Estado da Mulher e da Diversidade Humana (Semdh) da Paraíba, Lídia Moura. “Às vezes, a mulher possui uma renda, mas o companheiro quer controlar esse dinheiro. Nós, enquanto Semdh, já observamos casos em que o sujeito ficava com o cartão do banco [da mulher], e ela não podia comprar nem mesmo objetos de uso pessoal, como uma lingerie”, revela a secretária.
Outro exemplo dessa modalidade de violência doméstica é a transferência de bens no nome do cônjuge para terceiros, para que a mulher não tenha direito ao patrimônio em uma eventual separação.
Estelionato afetivo também é exemplo
No contexto da violência doméstica, a delegada Sileide Azevedo ainda chama atenção para a prática do chamado estelionato afetivo. O termo é usado para definir um tipo específico de violência patrimonial contra a mulher, no qual a vítima é enganada e manipulada emocionalmente em uma falsa relação de afeto — como um namoro ou uma promessa de casamento.
“Esse crime ocorre quando o autor simula sentimentos amorosos para aplicar um golpe financeiro. Em muitos casos, o golpista passa semanas ou meses fingindo afeto, até convencer a vítima a realizar transferências bancárias, dar presentes caros ou até transferir bens para seu nome”, alerta a coordenadora das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher no estado.
O estelionato afetivo está, inclusive, previsto no artigo 171 do Código Penal Brasileiro (CPB), que descreve o crime de estelionato como “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”. Além disso, vítimas dessa categoria de violência patrimonial também são contempladas pela Lei Maria da Penha, sobretudo no que diz respeito a medidas protetivas contra os autores do crime.
Outras condutas que constituem violência patrimonial também se enquadram em tipos penais já previstos no ordenamento jurídico brasileiro. A depender da situação, o agressor pode ser responsabilizado por crimes como dano (art. 163 do CPB), furto (art. 155) ou apropriação indébita (art. 168).
Serviços de assistência ofertam amparo e oportunidade
Na Paraíba, a rede de assistência a mulheres vítimas de violência patrimonial ou outros tipos de agressão doméstica conta, atualmente, com 21 Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deams), incluindo três unidades recém-criadas, em cidades como João Pessoa, Campina Grande, Cabedelo, Bayeux, Santa Rita, Patos, Sousa, Guarabira e Cajazeiras. Nos territórios onde não existem Deams instaladas, as vítimas são atendidas nas delegacias municipais.
De acordo com Sileide Azevedo, a Coordeam-PB tem investido na qualificação de suas equipes profissionais, por meio da Academia de Ensino da Polícia Civil. Cursos sobre violência doméstica e sexual e melhoria do atendimento e acolhimento das vítimas são oferecidos continuamente. “Os novos agentes que ingressam na carreira já recebem, durante a formação inicial, conteúdos específicos voltados ao enfrentamento da violência de gênero”, informa a delegada.
A Secretaria da Mulher e da Diversidade Humana da Paraíba, por sua vez, mantém diversas políticas públicas de combate à violência doméstica e amparo às vítimas desse tipo de crime. Um dos destaques é o Empreender Mulher, linha de crédito vinculada ao Programa Empreender PB e voltada a mulheres em situação de vulnerabilidade, incluindo vítimas de violência atendidas pelo Governo Estadual — como as acolhidas por Centros de Referência, casas-abrigo ou pela Patrulha Maria da Penha.
O objetivo da iniciativa é resgatar a dignidade dessas mulheres, fomentar sua autonomia econômica e impulsionar o protagonismo feminino no empreendedorismo. O crédito qualificado varia de R$ 1.500 a R$ 15 mil para pequenas produções. O pagamento é iniciado um ano após a liberação do recurso, permitindo que a mulher tenha tempo para estabilizar--se financeiramente, e a quitação pode ser feita em até 24 meses, com correção de 0,5%.
A Semdh oferta, ainda, cursos profissionalizantes na modalidade de Ensino a Distância (EaD) e bolsas para conclusão dos ensinos Fundamental ou Médio. “Isso vai ampliar a qualificação da mulher, melhorar o currículo e possibilitar sua entrada no mercado de trabalho. Afinal, a dependência financeira é um fator que contribui para a permanência no ciclo da violência”, enfatiza a secretária Lídia Moura.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 27 de julho de 2025.