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Resenha

“A memória é uma ilha de edição”

publicado: 26/04/2023 11h20, última modificação: 26/04/2023 11h23
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Cada gesto presente em ‘Aftersun’ é uma peça do quebra-cabeça das reminiscências - Foto: Mubi/Divulgação

por Audaci Junior*

Antes de falar sobre o “gancho” para o pensamento do poeta Waly Salomão (1943-2003) que batiza este texto, vou revelar algo que aconteceu nos primeiros passos da minha infância, algo bem íntimo: certo dia, na boca da cozinha de casa, eu me detive quando percebi a minha irmã mais velha (bem mais nova que a protagonista de Aftersun) aos prantos, revelando para minha mãe e avó materna que por vezes – na calada da noite – escutava nossa genitora chorando à porta fechada, achando que meu pai estava “agredindo” ela. Sem terem a ciência que eu, mais novo, estava no recinto, lembro da minha avó surpresa se dirigindo à minha mãe, quase como um murmúrio: “Ela sabe”.

O que essa reminiscência sobre o relacionamento sexual dos meus pais tem a ver com um dos grandes filmes do ano passado e que agora pode ser apreciado via streaming, na plataforma Mubi? Assim como Sophie, interpretada de forma arrebatadora pela Frankie Corio, a inocência dos 11 anos de idade pode ser revista com o amadurecimento anos mais tarde. Você pensa que tudo está bem (ou não), que tudo era “assim” (e não “assado”), mas, no revisionismo dos álbuns e/ou vídeos caseiros de família, no passe do tempo pelo dedo indicador na tela de um celular ou tablet – para tentar ser mais “moderno” – há uma reflexão sobre momentos e pessoas que estão ao redor da nossa vida.

Em Aftersun, as primeiras são vindas de uma filmadora portátil, que congela o tempo, que faz ele se materializar no presente através dos quadrados de pixels, aparentes no pausar do registro. Com uma semana de férias na Turquia, um pai muito jovem chamado Calum (vivido por Paul Mescal, que foi merecidamente indicado ao Oscar de Melhor Ator neste ano), que até é confundido como irmão mais velho da filha, é desconsertado por uma pergunta vinda da garota. Aos poucos vamos descobrindo “camadas” colocadas pela diretora e roteirista escocesa Charlotte Wells, que joga peças do quebra-cabeça de como é, definitivamente, a nossa própria cabeça: peças, montadas na ilha de edição craniana, formando memórias que podem ser mutáveis, que podem fazer um sentido na época que foram “gravadas” na mente, mas que também podem passar a ter outro quando revisitadas em novas sessões assim que assistimos um vídeo, examinamos uma foto ou simplesmente fechamos os nossos olhos.

A genialidade de Aftersun reside na estrutura aparentemente simples que está disponível nos seus recortes daquelas férias. À medida que o filme avança, vamos percebendo (ou não) o que se passa naquele contexto. São situações ou momentos que parecem uma coisa, mas, na verdade, pode espelhar outra. Não falo apenas na curiosidade da sexualidade da Sophie, que parece estar “deslocada” quando está ilhada por adolescentes cheios de hormônios por todos os lados – perceba como cada gesto, cada situação, cada momento banal mostrados nos recortes faz com que o espectador veja de cima o todo. Ou, pelo menos, o “todo” daqueles fragmentos, como sua vida refletida em um espelho quebrado. Uma irrelevante subida no parapeito, um complicado tirar de um gesso, uma mera música selecionada em um caraoquê da programação recreativa do hotel. Quem não percebe assim que acaba o filme, achará o longa-metragem independente uma simples história de férias de um pai com a sua filha. Nada além disso. Mas não é. Assim como eu, uma criancinha que mal falava presenciando a cena incólume aos olhos dos adultos e sem saber o que, de fato, acontecia na cozinha em um fragmento da minha memória, a Sophie adulta vai percebendo o que realmente estava passando nas entrelinhas daquelas férias.

Outro ponto interessante é que nem tudo parte do foco da câmera caseira, da máquina fotográfica ou das memórias dos personagens. A cineasta percebe que a densidade da história pode ser “especulativa” ou até metafórica como as luzes piscando freneticamente numa have, como fragmentos das memórias do passado vistas no presente.

Mesmo assim, haverá “lacunas”, como nas memórias das nossas vidas. Mas Aftersun não vai para a pieguice ou o dramalhão climático alojado em uma ou outra cena mais eloquente ou tentar ser mastigadamente expositivo. O filme tem a sensibilidade de fazer dele próprio as nossas memórias, tornando, assim, algo único. Como a vida.

 

 - Confira também a coluna Gi com Tônica sobre Aftersun

 

*Texto originalmente publicado na edição impressa de 26 de abril de 2023.