Comecei a ouvir o novo podcast de Chico Felitti para a Folha de S.Paulo, chamado O Ateliê. Chico foi o mesmo jornalista que em 2022 investigou e publicou o podcast viral A Mulher da Casa Abandonada e, com a enorme repercussão que seguiu aquele programa, já era de se esperar que sua próxima história seria certamente “poderosa”. Mas uma seita, em plena escola de artes em São Paulo? Acho que ninguém poderia esperar.
Mas ainda não é sobre isso que vou falar hoje.
Os podcasts são uma mídia forte no Brasil, com produções que contam com audiências para lá da casa dos milhões de ouvintes. Um dos mais fortes (e que já falei por aqui antes) é Projeto Humanos, do jornalista e podcaster paranaense Ivan Mizanzuk. O podcast, que começou de forma independente em 2015, conta histórias de pessoas comuns e suas reviravoltas não ficcionais dignas de livros – geralmente, de drama. Foi com a temporada O Caso Evandro, que o programa saiu de sua bolha, crescendo ao ponto de virar série documental na Globoplay.
A nova temporada começou a ser publicada em abril de 2022 e nela Mizanzuk aborda um dos casos mais cruéis do Brasil: a morte e emasculação de meninos na cidade de Altamira, no Pará. A cada episódio, Ivan conversa com pesquisadores e advogados, visita antigas matérias de jornais e rádios, lê autos de processos, cartas e documentos, e nos conta minuciosamente a linha do tempo do caso.
Mizanzuk conta com uma grande equipe para que esse trabalho seja embasado e aprofundado, como não deveria ser diferente. São mais de 20 pessoas espalhadas pelo Brasil e, até agora, 28 episódios de cerca de 90 minutos de duração foram lançados. Para além do caso de Altamira em si, o Projeto Humanos é uma aula de storytelling e, diferente de muito que aprendemos nas universidades, traz uma perspectiva bastante pessoal, ainda que na maioria das vezes imparcial. Pode soar complexo, mas é mais ou menos assim: “Esse aqui foi o acusado. Ele está preso, porque a acusação afirma que foi visto em tal hora, em tal local. Mas no depoimento X, contradizendo isso, ele tem álibi confirmado. Na minha opinião, eu custo a acreditar que o álibi seja falso”.
Imersivo, Projeto Humanos: Altamira é meu podcast de ouvir no carro, como outros já foram. No fim de semana em casa, focada na arrumação da prateleiras de livros (e agora devidamente equipada com um belo headphone), pude ouvir com atenção redobrada os episódios recentes da série, coincidentemente a partir do finalzinho de número 25 (A profetisa), onde finalmente Mizanzuk entrevista Valentina de Andrade, agora com mais de 90 anos de idade, uma das acusadas do caso e que foi absolvida no começo dos anos 2000, e seus familiares.
Digo “coincidentemente” porque a partir do episódio seguinte a história dá uma guinada quando aponta coincidências e relaciona o caso dos meninos do Pará com outras 30 mortes de garotos no Maranhão. Se você leu algo sobre o tema, talvez não seja reviravolta alguma algo que foi noticiado aos montes há 20 anos. Para mim, muito foi novidade. Não porque estava fora do meu alcance, mas porque conhecer o caso dessa forma, através do podcast e da recheada enciclopédia de documentos, fotos e vídeos no site da série, me parecia a forma mais correta ou até ética de ter contato com a história.
Essa é minha ótica, claro. Enquanto acho desnecessário que contem mais uma vez a história de Jeffrey Dahmer na ficção, como falei na coluna sobre Dahmer: Um Canibal Americano, torço para que mais produções como Altamira venham à tona. Não é fácil contar uma história como essa, com tantos personagens envolvidos e que trata de um pesadelo real. Muitos devem questionar as abordagens e a tal ética que eu falei agorinha. No fim das contas, Projeto Humanos: Altamira encara a missão de expor um processo repleto de falhas e inconsistências, e arrecada fundos para ajudar as mães e pais que perderam seus filhos (ainda que sobreviventes) nesta tragédia recente.
Projeto Humanos: Altamira é também sobre o fazer do Direito e do Jornalismo em si, trazendo duras perspectivas sobre o mal funcionamento de alguns de nossos sistemas e instituições e os malefícios do jornalismo sensacionalista e julgador. Acho que eu não poderia indicar mais o programa de Mizanzuk (e de toda a equipe) para quem se interessa por jornalismo investigativo, storytelling e histórias de crime reais.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 25 de janeiro de 2023.