João Pessoa, 1º de maio de 2024, Dia do Trabalhador: cerca de 100 motoboys reúnem-se em frente a uma academia no bairro de Cuiá. A revolta é contra o proprietário do local, que agrediu um entregador após se negar a fornecer o código de recebimento de um pedido. O incidente foi registrado em vídeo pelo próprio motociclista. Na capital, 2 de outubro de 2024: câmeras de segurança flagram o dono de um restaurante, em Colinas do Sul, desferindo um tapa no rosto de um entregador de gás, que estava sentado e não reagiu. Na manhã seguinte, dezenas de motociclistas paralisaram a frente do estabelecimento em protesto. No dia 30 de maio deste ano, o bairro Colinas do Sul é palco de mais um tumulto: motoboys derrubam o portão de um condomínio após um entregador relatar, nas redes sociais, ter sido agredido e ameaçado por um morador com um pitbull.
Esses episódios, registrados em notícias e vídeos que viralizaram na internet, são a face mais explosiva e visível de um problema cotidiano que entregadores por aplicativo enfrentam com frequência crescente: a violência, verbal e física, por parte de clientes. A ausência de estatísticas oficiais consolidadas sobre o tema esconde a dimensão real do fenômeno, mas a sequência de casos noticiados e a mobilização rápida e organizada da categoria, por meio de grupos de mensagem, indicam uma escalada das ocorrências. Para esses profissionais, o risco inerente ao trabalho não se limita mais aos perigos do trânsito ou à ameaça de assaltos; inclui, agora, a possível agressividade na hora da entrega.
“Todo motoboy que está na rua tem alguma história para contar, todo dia”. A fala de Johnathan Praxedes, 41 anos, pai de quatro filhos e entregador há seis anos, resume a percepção de que a violência é um componente quase rotineiro da profissão. Ele descreve um clima constante de humilhação. “Ontem mesmo, fui fazer uma entrega em Mangabeira. O cliente não estava lá e me xingou de tudo que não presta. Eles preferem humilhar mesmo. Motoboy é muito discriminado”.
O entregador por aplicativo relata que, muitas vezes, as ofensas acontecem quando o cliente quer que o trabalhador suba até o apartamento. Se o pedido chega atrasado ou a embalagem vem danificada, também é o motoboy quem recebe a culpa. “Às vezes, o restaurante segura vários pedidos, para saírem todos de uma vez, e o cliente acha que a demora é culpa nossa. Quando a gente chega, é xingamento na certa”.
A sensação de impunidade e ineficácia dos canais formais de denúncia alimenta a frustração. “A gente procura os direitos, vai na delegacia dar parte e não acontece nada. Não resolve. E aí, a gente se reúne e vai quebrar o carro do cara? Isso também tá errado”. Para Johnathan, a explicação para as reações coletivas de seus colegas está no cansaço acumulado. “Porque tá todo mundo revoltado, fatigado com a situação. A gente tem que levar comida e acaba recebendo xingamento, sendo humilhado”.
Orientação e apoio
A empresa de delivery iFood afirma que a orientação é clara: o entregador deve deixar o pedido no primeiro ponto de contato com o cliente, seja o portão da casa ou a portaria do prédio. “Essa é a recomendação repassada tanto aos entregadores quanto aos consumidores”, frisa a empresa, em nota ao jornal A União. A plataforma informa, ainda, manter tolerância zero a agressões e ter implementado medidas de prevenção, como a campanha #BoraDescer, que estimula clientes a buscarem seus pedidos na portaria.
Além disso, o aplicativo oferece assistência gratuita aos profissionais, por meio da Central de Apoio Psicológico e Jurídico, criada em parceria com o coletivo Black Sisters in Law. Segundo a empresa, de julho de 2024 a junho de 2025, em todo o país, foram realizados 464 atendimentos desse tipo, mais que o dobro do mesmo período no ano anterior. Desse total de casos, 40,5% foram por discriminação, 23,2% por ameaças e 21,2% por agressões físicas. “O aumento de registros mostra tanto a confiança no canal quanto a persistência do problema social”, analisa a empresa.
Casos denunciados podem gerar indenização
Na avaliação do Ministério Público do Trabalho (MPT), episódios de violência contra entregadores por aplicativo podem ser enquadrados como acidentes de trabalho e exigem formalização. A procuradora Myllena Alencar, representante regional da Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho, explica que o trabalhador deve comunicar imediatamente à empresa e registrar Boletim de Ocorrência (B.O.).
Neste ano, o MPT já realizou diversas audiências públicas, em todo o país, para enfrentar a subnotificação de acidentes, violências e assaltos envolvendo entregadores e motoristas por aplicativo, em parceria com órgãos públicos e representantes dos trabalhadores. A procuradora destaca, ainda, que esses episódios podem gerar indenização ao empregado, por meio de ação individual na Justiça do Trabalho, mesmo sem o reconhecimento formal do vínculo de emprego.
Para Myllena Alencar, a ausência de garantias trabalhistas agrava a vulnerabilidade da categoria. “Um dos impactos do trabalho por meio de plataformas digitais é a precarização: longas jornadas, remuneração incerta, insegurança quanto ao futuro e ausência de direitos básicos. O reconhecimento do vínculo empregatício é indispensável para assegurar a proteção necessária a esses trabalhadores”.
Essa é a realidade do motoboy Maxwel Cardoso, 39 anos, morador de Mangabeira e pai de uma adolescente. Ele descreve uma situação na qual foi pressionado a entrar em uma residência para concluir a entrega. “A cliente queria que eu levasse a comida até a casa dela. Eu disse que podia entregar até a garagem, mas não era minha função entrar. Ela começou a me xingar. Eu devolvi o pedido, como o aplicativo permite, mas saí humilhado. A gente já trabalha no sol, na chuva, e ainda tem que passar por isso”.
A rotina de Maxwel é intensa: ele começa às 11h, faz uma pausa curta à tarde e segue até 1h30 do outro dia. “É um trabalho cansativo. Quando vem esse tipo de situação, você fica chateado, mas precisa continuar, porque tem conta para pagar e família para sustentar”.
“Estamos adoecendo”, diz presidente de sindicato
Conforme o presidente do Sindicato dos Trabalhadores com Moto (Sindmotos) da capital, Ernani Bandeira, a raiz dos conflitos está, muitas vezes, nos bastidores das entregas, como Johnathan também aponta. “Para não perder clientes, os restaurantes informam que o pedido já saiu, quando ele ainda está na cozinha. O cliente fica nervoso, acha que o atraso é culpa do motoboy e descarrega a raiva no trabalhador”.
Ernani diz que o sindicato recebe queixas constantes. “A gente orienta nossos filiados a não revidar, a procurar o caminho legal, mas a categoria está no limite. Além da violência de clientes, ainda tem assaltos, acidentes e mortes no trânsito. Estamos adoecendo psicologicamente”.
Para ele, a falta de qualificação oferecida por aplicativos também amplia a vulnerabilidade dos entregadores. “As plataformas só querem vender. Não oferecem curso, não treinam. Já os filiados ao sindicato recebem palestras e orientações de trânsito. Isso faz diferença. Mas a maioria está por conta própria, exposta e sem proteção”. O dirigente lembra, ainda, que, apesar de a categoria carregar a responsabilidade de manter a cidade em movimento, os motoboys seguem discriminados. “Ninguém valoriza se é um pai que está com um problema com sua família. Ninguém vê a gente como pessoa comum, mas como alguém que merece ser explorado. É lamentável”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 05 de Outubro de 2025.