Aos 11 anos de idade, no começo da década de 1990, Romero Nere começou a tocar repinique na bateria da Malandros do Morro, escola de samba localizada no bairro da Torre, em João Pessoa. Nove anos depois, o jovem tornou-se mestre da bateria — o Mestre Romero — e, hoje, além de comandar a percussão, é o presidente da agremiação, tendo acumulado 32 anos de casa. Tamanha devoção, que também passou para seus filhos, reflete um aspecto comum às organizações que integram o Carnaval Tradição da capital paraibana, como as escolas de samba, ala ursas, maracatus, clubes de orquestra e tribos indígenas — trata-se da relação de amor à cultura, ancorada na importância social que essas instituições possuem para seus integrantes e comunidades.
Para Harue Tanaka, pesquisadora e professora de Música da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), tais organizações carnavalescas ajudam a preservar as identidades coletivas, especialmente por sua origem, majoritariamente, em comunidades periféricas. “A cultura em geral, segundo [a antropóloga] Ruth Benedict, é a lente pela qual o homem vê o mundo. E, em um bairro como a Torre, por exemplo, tem tudo ali dentro: ala ursa, escola de samba, orquestra de frevo. Então, é um retrato da representatividade cultural de um lugar. E, quanto mais se fortalece esses grupos, mais a identidade daquele lugar também se fortalece, mas quem não valoriza a sua memória e a sua identidade se perde no tempo”, afirma.
A manutenção dessas tradições costuma ocorrer por meio da oralidade, na transmissão dos saberes de pai para filho, dos mais velhos para os mais novos. Foi assim que a Malandros do Morro, fundada em 1956, permaneceu viva até hoje, sendo a mais antiga escola de samba em atividade da capital. É o que garante o Mestre Romero, o qual reverencia o aprendizado obtido com outros líderes da agremiação. “A gente vai passando o bastão. E foi João Balula, o maior defensor e criador do movimento negro do estado da Paraíba, que deixou um legado muito grande para todos nós. Ele nos ensinou, um dia, a estar aqui, conduzindo tudo isso”, relata o dirigente.
Um dos três filhos de Romero é Nathan Nere, de 15 anos. Considerando o histórico da família, seu ingresso na escola foi tardio, apenas aos 13 anos; mas, atualmente, ele não se vê fora da Malandros do Morro. Além de contribuir desde a bateria à confecção de fantasias, o adolescente entende a agremiação como um importante espaço de socialização. “Hoje, eu cheguei até mais cedo [ao barracão], porque vi que tinha muita coisa para fazer, mesmo que eu estivesse sozinho no começo. E aprendendo, se misturando, conhecendo novas pessoas, a gente vai gostando de estar aqui dentro e de conversar com os colegas, mesmo que não esteja fazendo nada de Carnaval”, comenta.
O legado familiar na escola de samba não é exclusivo da Malandros do Morro. O mesmo fenômeno acontece, por exemplo, em agremiações mais jovens, como a Unidos do Róger, fundada em 2014 e atual tetracampeã do Carnaval Tradição. O mestre de bateria da escola, Wagner Santos, conhecido como Mestre Bola, é mais um exemplo, tendo esposa e filho envolvidos com a agremiação. “Tem muita família dentro da escola de samba, porque um puxa o outro. Um ajuda na alegoria, o outro toca, outro está na fantasia, outro está no adereço, e assim vai. Aqui dentro, a gente trabalha em conjunto, e é em conjunto que a gente ganha”, declara.
Organizações prestam assistência social aos bairros de origem
Além de preservar a identidade cultural e reforçar os laços familiares, as instituições tradicionais do Carnaval pessoense prestam assistência às comunidades de origem. É o caso de Urso Branco & Cia de Mandacaru, atual bicampeão entre as ala ursas da capital. O presidente da instituição, Juan dos Santos, explica que o trabalho social é contínuo, com arrecadação de doações para os moradores locais. “Quando passa o Carnaval, a gente realiza a nossa confraternização e, logo após, faz sempre alguma coisa para a Páscoa, para o Dia das Mães e para a festa das crianças. A gente faz sopão também e, às vezes, sai no bairro, nas partes que não são tão carentes, e consegue arrecadar alimentos. Em 2023, fizemos um bingo solidário e reunimos 846 kg de alimentos, que foram revertidos em cestas básicas para toda a comunidade”, detalha.
O caráter comunitário e festivo da ala ursa atrai a participação de crianças e jovens do Bairro Mandacaru. Juan ressalta que o envolvimento com a arte acaba gerando novas oportunidades de vida para essas pessoas, por meio do ingresso no mercado de trabalho, por exemplo. Para o presidente, isso é ainda mais importante quando se leva em conta o contexto social onde o Urso Branco está inserido. “A gente sabe que tem um bairro violento, e é por isso que eu não paro. Quando passa o Carnaval, continuo meu trabalho de uma forma ou de outra, para não deixar as crianças soltas na rua. E, às vezes, os pais chegam até a gente, pedindo para conversar com os filhos e dar um conselho. Aí, a gente vai conversar, fala que, se não obedecerem à mãe, vão ficar afastados. Mas eles não querem ficar afastados, eles querem brincar, tocar e se divertir. Então, a gente usa isso até para dar um pouco de disciplina”, conta.
A ideia de desenvolver novos talentos também guia o Mestre Romero, que, desde os anos 2000, forma jovens ritmistas para a bateria da Malandros do Morro. O trabalho já rendeu frutos, com integrantes tornando-se professores em outros projetos de música da capital. Além disso, a escola de samba tornou-se referência para moradores da Torre, especialmente das comunidades Padre Hildon Bandeira, São Rafael e Brasília de Palha. “Temos tudo dentro das comunidades: ritmistas, comissão de carnaval, sambistas, destaques de carro alegórico, operários de barracão, 80% da bateria... E a gente dá muito valor a quem é da casa. Neste ano, estamos com um programa de remunerar algumas pessoas que precisam. É um valor simbólico, mas é um incentivo, e é a primeira vez que a gente faz isso, porque eles já começam a perceber que a escola está valorizando”, informa.
Dedicação se mantém durante, praticamente, todo o ano
Embora os desfiles do Carnaval Tradição ocorram apenas uma vez por ano, as organizações envolvidas respiram essa cultura o ano inteiro, já que as preparações começam com meses de antecedência. Os esforços empreendidos são grandes, até porque esses grupos não têm os mesmos recursos que agremiações de outras cidades brasileiras, como o Rio de Janeiro. “A gente gosta da cultura. Se não gostasse, sinceramente, eu não fazia parte, e isso já tinha acabado, porque o recurso ajuda muito, mas não supre a necessidade”, alega o Mestre Bola. Já a vice-presidente e rainha de bateria da Unidos do Róger, Laura López, acredita que o amor pela escola é o elo garantidor de sua sobrevivência. “Essa é uma questão que vai de geração em geração. No meu caso, minhas filhas, desde pequenas, já começaram a gostar daqui, e elas vão ser as encarregadas de trazer mais gente [para cá], para que isso continue”, complementa.
O amor, porém, não deve ser o fator determinante para a permanência das escolas de samba, ala ursas e demais grupos carnavalescos. Conforme defende Harue Tanaka, é fundamental a presença do Poder Público como incentivador dessas organizações. “Precisa haver um acompanhamento anual, não sazonal, com uma reserva de verba para a manutenção dessas manifestações, porque elas acontecem o ano todo. As pessoas também têm que comer, e ainda tem a parte da vestimenta e o instrumental, que é muito trabalhoso. Cada pele que fura, que rasga, leva um valor considerável. E não é todo mundo da comunidade que tem R$ 80 ou R$ 100 para dar numa pele de um tambor, por exemplo”, argumenta a professora da UFPB.
Atualmente, a principal fonte de recursos públicos para o Carnaval Tradição é o edital de incentivo da Fundação Cultural de João Pessoa (Funjope) que, neste ano, destina um subsídio total de R$ 1,169 milhão às agremiações. Contudo, segundo o diretor-executivo da instituição, Marcus Alves, essa não é uma ação isolada, mas integra um conjunto de iniciativas de apoio realizadas ao longo do ano. “Nós trabalhamos com culturas populares em diversos e variados eventos e ações culturais e também nos territórios, nos polos, nos bairros nos quais realizamos periodicamente oficinas e capacitações. Lembro, por exemplo, que, durante a Festa das Neves, o São João, o Carnaval e, também, no próprio Natal, nós incluímos um conjunto grande de atividades populares nos mais variados estilos e linguagens”, afirma.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 15 de fevereiro.