Notícias

tarja preta

Consumo excessivo ameaça a saúde

publicado: 07/10/2024 09h33, última modificação: 07/10/2024 09h36
Uso indiscriminado desse tipo de medicamento compromete resultados buscados e potencializa efeitos adversos
2024.09.05 Medicamentos tarja preta © Carlos Rodrigo (40).JPG

Remédios classificados com a cor preta podem provocar dependência física e/ou psíquica, por isso só podem ser adquiridos por meio de prescrição | Fotos: Carlos Rodrigo

por Marcella Alencar*

Usadas para classificar os medicamentos, as tarjas presentes nas caixas desses produtos facilitam a identificação visual dos riscos que um remédio pode oferecer a quem for utilizá-lo. Apesar de serem importantes ferramentas farmacológicas destinadas ao tratamento de determinados problemas de saúde, as medicações de tarja preta, nesse sentido, evidenciam a necessidade de um maior controle em sua comercialização, chamando atenção para os efeitos que podem causar no usuário.

A classificação representada pela cor preta aponta, especificamente, para a possibilidade de tolerância e dependência física e/ou psíquica do remédio, por isso este só pode ser adquirido por meio de uma prescrição médica. Além disso, também são proibidas as propagandas comerciais desses itens.

De acordo com a farmacêutica Liana Morais, professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), entre os produtos mais comumente encontrados sob esse rótulo estão os ansiolíticos, indutores de sono, estimulantes e alguns antidepressivos. A maioria dos anestésicos centrais, os derivados de morfina e os opioides também são substâncias de tarja preta.

Jucélia Pinto relata que, na farmácia onde trabalha, em João Pessoa, um dos tipos de receita mais apresentados para tais remédios destina-se ao tratamento do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). “Geralmente, temos mais de 20 dispensas por mês, só desse tipo de receita”, afirma Jucélia, salientando que procura sempre orientar os clientes a não usar a medicação de maneira descontrolada, conscientizando-os dos perigos que ele pode provocar, se consumido em excesso e sem o acompanhamento apropriado.

Assistência médica é essencial para tratamentos

O gastrônomo Carson Augusto, de 30 anos, é um dos cerca de 11 milhões de brasileiros afetados pelo TDAH, conforme dados divulgados pelo Ministério da Saúde em 2022. Ele diz ter recebido o diagnóstico do distúrbio ainda na infância. “Depois que descobri o Transtorno de Déficit de Atenção, comecei, com orientação de um psiquiatra, a usar um medicamento. Percebi que todo pensamento que eu tinha e que me tirava o foco sumia e eu conseguia concluir minhas atividades, o que era uma dificuldade que eu tinha. Mas a questão é que o vício no medicamento pode ser muito grande, porque você acaba querendo sentir aquele efeito o tempo todo e eu tive que aprender a administrar o uso, com orientação do médico”, comenta Carson.

O acompanhamento profissional adequado é, de fato, essencial para casos como o do gastrônomo. Segundo Liana Morais, “os medicamentos de tarjas pretas são conhecidos por seus efeitos e pela sua capacidade de induzir tolerância no organismo, o que pode levar à dependência química”.

A tolerância a que se refere a especialista ocorre quando a dose habitual da medicação começa a perder o efeito pretendido pelo tratamento, fazendo com que, conforme explica a professora da UFPB, o paciente precise aumentar, cada vez mais, a quantidade de consumo da substância para obter os mesmos resultados induzidos pela dosagem inicial.

“Isso é particularmente comum com ansiolíticos, usados para tratar insônia e ansiedade, em que, com o tempo, o paciente pode passar de uma dose controlada para quantidades excessivas”, exemplifica Liana, enfatizando que, por isso, é importante manter um grau acentuado de cuidado na utilização desses remédios. “Se você toma uma dose de medicamento para dormir, por exemplo, depois de algum tempo, ele começa a perder o efeito. Você vai precisar adicionar mais uma dose e, lá na frente, já estará sem conseguir dormir novamente”, alerta a farmacêutica.

Carson reconhece ter vivenciado eventuais momentos de vulnerabilidade, durante seu tratamento para TDAH, que o expuseram ao risco da dependência química. “Às vezes, a gente não consegue lidar com nossos pensamentos intrusivos e isso aumenta a sensação de necessidade [da medicação], de um jeito que expõe a possibilidade de se ficar dependente, de verdade”, relata o gastrônomo, enfatizando que hoje mantém precaução reforçada no uso de seu remédio.

“A dependência gerada por esses medicamentos é similar à provocada por drogas ilícitas, como a cocaína, pois o organismo passa a necessitar da substância para funcionar”, destaca Liana.

Quando há tolerância, o usuário precisa aumentar o consumo para obter os mesmos resultados da dose original

Além do vício, riscos podem incluir ideação suicida e até morte

Com a perda de controle na dosagem, o usuário de um remédio de tarja preta não se sujeita apenas à ameaça do vício na substância. De acordo com Liana Morais, quanto maior a dose consumida, maiores também serão os efeitos adversos do medicamento sobre a saúde, os quais podem incluir sonolência extrema, perda de coordenação e até a morte, em casos mais graves.

Outro risco a ser considerado por quem faz tratamento com esse tipo de remédio é a possibilidade de seus efeitos serem perigosamente potencializados pelo consumo de bebidas alcoólicas. “Por exemplo, medicamentos estimulantes, quando usados junto com o álcool, podem provocar alucinações e agitação intensa”, aponta a farmacêutica. Esse fenômeno que ela descreve, conhecido como sinergismo, aumenta as chances de o paciente sofrer uma overdose, já que o álcool facilita a absorção da droga e eleva a intensidade de seus possíveis danos ao organismo.

Liana ressalta ainda que usuários mais jovens são particularmente suscetíveis a outro problema associado ao uso desses produtos. “Eles [os remédios de tarja preta] agem no sistema cardiovascular, facilitando a dependência química às drogas e, em crianças e adolescentes, podem aumentar a prevalência de ideação suicida”, frisa a especialista, lembrando que, nem sempre, quem prescreve essas medicações são os psiquiatras, e que elas não são usadas somente para transtornos mentais, embora a necessidade de cautela no consumo deva ser a mesma para todas.

Projeto da UFPB

Engajada na educação dos cuidados necessários ao uso de medicamentos de tarja preta, Liana coordena, na UFPB, o projeto de extensão Tarja Preta, que promove atividades para alertar sobre os riscos dessa classe de substâncias. A iniciativa também realiza reuniões de capacitação e apresentações de algumas das chamadas Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), disponibilizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). 

Especialista enfatiza a importância da utilização cautelosa dessas medicações, com o acompanhamento profissional adequado | Fotos: Carlos Rodrigo

Como define a professora, o Tarja Preta “tem a finalidade de informar a sociedade sobre o uso correto de psicofármacos, como os ansiolíticos e os antidepressivos, mas também oferece a oportunidade de as pessoas conhecerem alternativas de tratamento, como as Práticas Integrativas e Complementares de Saúde, além da psicoterapia, sendo esta uma forte aliada para o tratamento com medicamentos”.

Karolaynne Rodrigues, aluna de Medicina na universidade e bolsista de extensão do projeto, conta que as atividades do Tarja Preta são realizadas majoritariamente dentro da UFPB, mas também chegam a escolas. “Participar dessas ações é um momento de troca e escuta. Falar de saúde mental, afinal, é falar sobre aquilo que nos torna humanos”, pondera a estudante, destacando que, caso haja interessados em levar a iniciativa para outros ambientes, pode-se contatar os responsáveis pelo projeto por meio de seu perfil no Instagram: https://www.instagram.com/tarjapretaufpb.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 06 de outubro de 2024.