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Diversidade é herança ancestral

publicado: 06/08/2024 09h23, última modificação: 06/08/2024 09h23
Raízes afro-indígenas explicam a composição demográfica da cidade, formada majoritariamente por brancos e pardos
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João Pessoa atraiu 110,4 mil novos habitantes em 10 anos e teve o maior crescimento do Nordeste | - Foto: Leonardo Ariel

por Priscila Perez*

Prestes a completar 439 anos, a cidade de João Pessoa nunca esteve tão diversa e madura como agora. De acordo com o Censo 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), das 833.932 pessoas que vivem na capital paraibana, 331.409 são brancas, 422.154 pardas, 76.644 pretas e 2.557 indígenas. Além disso, 123.614 têm mais de 60 anos e quase 445 mil são mulheres. Embora esses dados ajudem a traçar a composição demográfica da cidade, eles representam uma pequena amostra da diversidade que faz parte do DNA do pessoense. São mais de quatro séculos de miscigenação, com gente de diversas origens chegando à cidade, vindas do interior paraibano e de outros lugares.

Por trás dos números do IBGE, há uma ancestralidade muita rica e variada que remonta às raízes de João Pessoa. Segundo Estevão Martins Palitot, professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), a cidade é eminentemente afro-indígena, ou seja, com uma população de ancestralidade negra e muito ligada aos povos originários da Paraíba. Essa diversidade ainda é ampliada pela forte influência dos europeus no território, principalmente de portugueses e holandeses.
São esses traços raciais diversos que ajudam a explicar, por exemplo, o alto número de pardos destacado no último censo do IBGE. “A história da cidade parece ser muito branca, mas, no fim das contas, é menos europeia do que aparenta. É preciso valorizar as comunidades tradicionais que a cidade tem e que são parte da sua construção”, analisa o antropólogo. Segundo Estevão, há uma diversidade oculta no censo demográfico que também precisa ser evidenciada, composta por comunidades quilombolas, incluindo a de Paratibe, e ribeirinhas, como a do Porto do Capim. Embora as estatísticas não mostrem isso diretamente, esses componentes são importantes para entender a diversidade da cidade.

Tendência nacional
Segundo a socióloga Carolina Batista, as estatísticas de João Pessoa refletem as tendências observadas em todo o país, como a predominância de pardos, o envelhecimento da população e a maior quantidade de mulheres em relação à de homens. Por outro lado, João Pessoa também possui particularidades que correspondem a elementos próprios de sua miscigenação. “São formas históricas e sociais específicas que se desenvolveram na Paraíba, dentro da dinâmica nacional, incluindo a escravidão, os oligopólios, a concentração de terras e a maneira como essa sociedade se estruturou”, explica.
O que o IBGE mostra hoje está intimamente ligado ao processo de desenvolvimento que ocorreu nesta parte do território nordestino, baseado na monocultura da cana-de-açúcar e liderado por elites brancas. “É uma sociedade muito miscigenada, mas o número de pessoas que se autodeclaram brancas também é expressivo, mesmo com a maior parte da população se declarando parda”, analisa a socióloga. Essa diversidade é evidenciada não só pelos diferentes fenótipos observados nas ruas de João Pessoa, mas também pela sua riqueza cultural, que representa muito bem a variedade característica da cultura nordestina. A herança afro-indígena é indiscutível. “Não se trata apenas da diversidade de cores, mas das próprias tradições. Existe todo um sincretismo religioso colocado nas festas tradicionais da cidade”, cita Carolina.

Legado na culinária
Embora os povos indígenas representem menos de 2,6 mil pessoas atualmente na capital paraibana, suas influências culturais continuam presentes em todos os aspectos da sociedade pessoense, desde o jeito de falar até a culinária local. “No geral, estatisticamente, a população indígena parece muito reduzida, mas isso não corresponde ao impacto cultural e histórico que ela tem na sociedade”, salienta o antropólogo Estevão Martins Palitot.

O colorido das ruas da capital paraibana

A Praça André Vidal de Negreiros, conhecida como Ponto de Cem Réis, no Centro da capital, exemplifica muito bem como a cidade é diversa. Em meio à multidão, um homem negro, de barba branca aparada, se destaca pregando o Evangelho. José Lourenço é marroquino, tem 67 anos, mas vive em Minas Gerais desde os dois, e atualmente está visitando João Pessoa com a missão de transmitir a palavra de Deus. “Nasci em Marrocos, mas sou brasileiro, pai de quatro filhos”, fala orgulhoso.

Mais à frente, Shuang Hua Wei, um comerciante chinês que mora na cidade desde 2007, compartilha que não pretende retornar definitivamente ao seu país de origem, apenas para visitar parentes. “Tenho uma filha paraibana. João Pessoa é uma cidade muito tranquila e gosto daqui. Moro no Centro há sete anos”, acrescenta. Já Matheus Henrique, 20 anos, enxerga a diversidade como um item fundamentalmente histórico de João Pessoa, ligado à miscigenação. Para ele, essa troca cultural é muito rica, porque “toda pluralidade gera novas ideias e discussões”. O jovem, que estava na loja de Shuang, tem o Ensino Médio completo e quer fazer faculdade de Biologia.

Enquanto isso, nos arredores do estabelecimento, a pessoense Laiza Silva, 34 anos, considerada parda pelos parâmetros do IBGE, enfrenta o sol típico da cidade, ao lado de seu bebê, de um ano. Ela espera transformar sua moradia, ocupada irregularmente, em um lar confortável no futuro. “Tive que ocupar um prédio porque não conseguia mais pagar aluguel”, explica. Mesmo com o Ensino Médio completo, Laiza está desempregada e depende do programa Bolsa Família para sustentar seus três filhos. “A cidade precisa abraçar as pessoas, mas não pode só priorizar quem vem de fora”, reivindica.

O Ponto de Cem Réis também é palco para Vivina Reis, 77 anos, que saiu de Natuba, no interior paraibano, para fazer faculdade em João Pessoa e nunca mais voltou. Para ela, embora a cidade esteja se desenvolvendo, alguns aspectos do crescimento populacional são preocupantes. “Em Recife, há muitas pessoas nas esquinas e nos sinais vendendo pipoca. Aqui não é diferente. Vejo muitas pessoas em situação de pobreza, gente que sofreu na lavoura e que está aqui buscando oportunidades”, finaliza.

O envelhecimento do povo e as demandas da cidade

Com um índice de envelhecimento de 76,27, de acordo com o IBGE, João Pessoa tem aproximadamente 123 mil pessoas com mais de 60 anos e 163 mil na faixa etária de zero a 14 anos. Isso significa que há 76 pessoas idosas para cada 100 jovens. A pirâmide etária mudou, como explica a socióloga Carolina Batista: “A maioria da população tem entre 35 e 44 anos, algo muito expressivo. Não temos mais aquela base composta por uma população muito jovem, de até 25 anos”. Segundo ela, além de estar envelhecendo, a população pessoense também está numericamente maior, o que se configura em uma importante novidade histórica e social. “Como isso será daqui para frente, eu não sei, porque ainda falta infraestrutura”, analisa.

Se, por um lado, as famílias brasileiras estão tendo menos filhos, com uma média atual de 1,6 por mulher; por outro, há um fator decisivo para o envelhecimento da população pessoense: a cidade tem atraído cada vez mais pessoas com mais de 50 anos. Para o antropólogo Estevão Martins Palitot, João Pessoa se tornou uma referência tanto para aqueles que vêm do interior em busca de melhores serviços e cuidados de saúde quanto para quem deseja se aposentar e desfrutar de uma maior qualidade de vida. “São dois públicos distintos, que chegam em áreas diferentes da cidade e demandam serviços e usos variados. Apesar de João Pessoa ter construído muitas praças há alguns anos, ainda faltam espaços de sociabilização para a melhor idade”, pondera.

De acordo com o especialista, é preciso repensar a cidade antes que esse crescimento populacional resulte em erros já cometidos em outras partes do país que levaram ao agravamento da violência e das desigualdades sociais. “João Pessoa é a bola da vez, mas para o mesmo tipo de processo excludente. Esse crescimento é disjuntivo”, alerta Estevão. Para se ter ideia, de acordo com o Censo 2022, a capital paraibana ganhou 110.417 habitantes na última década, sendo a cidade que mais cresceu no Nordeste e a quarta em todo o país.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 04 de agosto de 2024.