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ONG EM PRATA

Doação a Angola passa pelo Cariri

publicado: 30/09/2024 09h02, última modificação: 30/09/2024 10h31
Jornal A União conversou com advogado de representantes de entidade envolvida em denúncia contra Pablo Marçal

por Priscila Perez*

Centro Vida Nordeste teria iniciado parceria com a Atos, que atua em Angola, em 2012 | Fotos: Divulgação/Centro Vida Nordeste

“Você acha que, realmente, uma organização chefiada por um bicheiro teria selo de integridade e parcerias com os Ministérios Públicos Estadual e Federal?”. Foi assim que Rafael Azevedo, advogado que representa as ONGs Atos e Centro Vida Nordeste, alvos de denúncia pelo Intercept Brasil, rebateu uma das várias irregularidades apontadas pelo site de notícias, que não só visitou o interior da Paraíba, como foi até Angola para mostrar o que está sendo feito por lá, como parte de um ambicioso projeto humanitário.

Com apenas quatro mil habitantes, o pequeno município de Prata, no Cariri paraibano, virou o centro das atenções após o veículo questionar o destino de R$ 4,5 milhões arrecadados por Pablo Marçal, candidato à Prefeitura de São Paulo, para desfavelizar a comunidade de Camizungo, a 44 quilômetros de Luanda — capital de Angola. No local, mais de 400 famílias vivem em barracos de chapas de metal, sem luz elétrica ou saneamento básico. Segundo a equipe do Intercept Brasil, os valores foram enviados à ONG Atos, que atua em Angola há, pelo menos, 14 anos, por meio do Centro Vida Nordeste, localizado em Prata, levantando suspeitas de irregularidades. O Jornal A União, então, conversou com o advogado para entender o caso e esclarecer o que teria colocado o município no centro dessa história.

Desde a publicação do Intercept Brasil, o que mais tem chamado atenção é o envolvimento da ONG paraibana no projeto, que é conhecida por sua atuação no Semiárido, mas não tem histórico em missões internacionais. A pergunta que fica é: por que a instituição foi escolhida para intermediar doações destinadas a outro país? A resposta, de acordo com Rafael Azevedo, é simples. Ele alega que o pastor Itamar Vieira, líder da Atos, e João Pedro Salvador de Lima, fundador do Centro Vida Nordeste, são paraibanos e se conheceram em Campina Grande, por frequentarem a mesma igreja. A parceria entre as ONGs teria começado, portanto, a partir dessa conexão, em meados de 2012, culminando na colaboração em Angola, a partir de 2017.

A polêmica

Mas, antes de mergulhar nos detalhes dessa relação, é preciso entender o que a reportagem do Intercept Brasil trouxe à tona. Nos últimos cinco anos, Pablo Marçal foi um dos principais nomes da campanha voltada à construção de 300 casas no povoado, mas apenas 42 teriam saído do papel até agora. Além dessa disparidade entre os recursos arrecadados e o número de casas entregues, a produção jornalística levantou três suspeitas em torno das operações. A primeira é que a sede da Atos no Brasil teria sido criada às pressas e sequer existia antes da visita da equipe do Intercept Brasil ao município. A segunda, por sua vez, envolve o presidente do Centro Vida Nordeste, José Leandro Ferreira, que estaria ligado a apostas ilegais na cidade. E a terceira diz respeito aos processos que a ONG paraibana e seu fundador — que também já foi prefeito de Prata, de 1997 a 2000 — teriam enfrentado por emissão de notas fiscais falsas e improbidade administrativa, respectivamente.

Dessa forma, o site não só colocou em xeque a parceria entre as instituições, mas também questionou a idoneidade dos envolvidos, apontando que o repasse dos valores milionários “estranhamente” passava pela Paraíba, em nome de pessoas com históricos controversos.

“As acusações são completamente falsas, não há provas. A reportagem do Intercept Brasil não cita uma única fonte [oficial], só ‘moradores locais’ e, desse jeito, eu posso dizer qualquer coisa”, rebate o advogado Rafael Azevedo.

Durante a entrevista ao Jornal A União, o porta-voz das ONGs afirmou que o Centro Vida Nordeste, fundado em 1998, é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip), o que significa que, além de ser rigorosamente fiscalizada, apresenta selo de integridade e isso lhe confere a a possibilidade de firmar parcerias com o Poder Público. Além disso, segundo Rafael Azevedo, todas as transações realizadas pela ONG são devidamente informadas ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), evidenciando que a contabilidade por lá seria mais rigorosa. O advogado assegura, inclusive, que o dinheiro, alvo da denúncia do Intercept Brasil, era enviado para uma conta exclusiva no Sicoob e, de lá, transferido para o Santander. Em resumo, conforme Rafael Azevedo, o banco seria o responsável por realizar o câmbio, recolher o tributo na fonte e informar tanto ao Coaf quanto à Receita Federal sobre as operações com uma instituição financeira de Angola — conferindo transparência ao processo.

Em razão dessas formalidades, Rafael Azevedo também refuta a acusação de que o presidente do Centro Vida Nordeste, José Leandro Ferreira, seria o bicheiro “Zé da Banca”, citado na reportagem do Intercept Brasil. De acordo com o advogado, José Leandro é agricultor. “E o que mais tem na ONG é agricultor. Ele é um homem simples, a esposa é do lar. E eu nunca vi um bicheiro pobre na minha vida”, complementa o advogado.

Segundo Rafael Azevedo, embora a banca de apostas Confiança Sports seja conhecida na cidade, nenhum morador sabe apontar quem é o dono — diferente do que diz o Intercept Brasil.

Leilões arrecadam mais de R$ 4 mi, mas menos de R$ 2 mi são aplicados

Defesa nega ilícitos e diz que transações da Centro Vida Nordeste foram informadas ao Coaf

Embora Pablo Marçal tenha sido o garoto-propaganda da campanha humanitária que arrecadou mais de R$ 4 milhões, ele não teria sido o único envolvido nessa iniciativa, como aponta a reportagem do Intercept Brasil. Antes de chegar a Angola, o Instituto Atos, em parceria com o governo do país africano, já havia estabelecido uma infraestrutura mínima em Camizungo, incluindo refeitório, horta, escola e posto de saúde. Desde 2017, o trabalho na comunidade visava ao combate à subnutrição, com o fornecimento de alimentação e o acesso à escola para mais de 800 crianças. Conforme o advogado Rafael Azevedo, também foi nesse período que a Atos teria dado início à parceria com o Centro Vida Nordeste, levando engenheiros agrônomos da Paraíba para Angola, sob a justificativa de que as duas localidades enfrentam desafios semelhantes quando o assunto é plantio em solo árido.

Uma nota veiculada no site da Atos alega que foi nesse momento que se definiu uma parceria estratégica entre os dois institutos, com a ONG paraibana disponibilizando a sua estrutura administrativa para gerenciar o recebimento e a transferência de recursos arrecadados no Brasil, destinados aos projetos em Angola.

Segundo o advogado Rafael Azevedo, até pouco tempo atrás, a Atos operava de forma virtual e não possuía uma sede física no país. Essa seria a razão pela qual a reportagem do Intercept Brasil, ao visitar o escritório da ONG, aberto em agosto, teve a impressão de que o ambiente havia sido “improvisado”.

A atuação de Marçal

Foi apenas em 2019 — supostamente, após conhecer o projeto por meio de uma seguidora — que Pablo Marçal entrou na campanha para arrecadar doações para a construção de casas e uma fábrica de tijolos orgânicos em Angola.

“Ele não tirou um centavo do bolso, mas influenciou as pessoas a doarem”, garante o representante das ONGs. Ainda conforme Rafael Azevedo, dois leilões foram realizados para arrecadar os recursos, mas nem todos os doadores pagaram pelos bens arrematados. “Muitos bens estão para ser vendidos e outros não foram pagos”, diz.

Do R$ 1,5 milhão conquistado no primeiro pregão eletrônico, menos de R$ 1,1 milhão foi efetivamente arrecadado e usado para construir 26 casas, cada uma ao custo de R$ 41 mil. Já no segundo leilão, dos R$ 2,7 milhões anunciados, apenas R$ 600 mil chegaram à ONG Atos, resultando na construção de mais 10 casas.

Pablo Marçal teria inflado os números ao anunciar o resultado dos leilões, mas, de acordo com o advogado, o dinheiro recebido foi aplicado conforme o andamento das doações. “Hoje, temos 42 casas e 10 em construção, muitas delas erguidas com recursos de outros doadores, do Brasil e de Angola, inclusive. Infelizmente, o dinheiro é bem menor na prática, mas o plano é construir 350 casas, fazer uma cidade no local, à medida que os recursos chegarem”, assegura Rafael Azevedo.

O Jornal A União tentou contato com a equipe do candidato à Prefeitura de São Paulo e ex-coach, Pablo Marçal, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.

Fundador de organização responde por ato de improbidade

O Intercept Brasil também trouxe à tona um possível passado “controverso” de João Pedro, fundador do Centro Vida Nordeste, apontando suspeitas de emissão de notas fiscais falsas e de improbidade administrativa — duas acusações que o advogado Rafael Azevedo faz questão de refutar.

Em 2017, o Ministério Público Federal (MPF) acusou João Pedro de desviar verbas públicas destinadas à merenda escolar em Prata. Porém, segundo Rafael Azevedo, a denúncia foi rejeitada e considerada “inepta” pela Justiça Federal por falta de provas — e não por erro na petição inicial, como disse o Intercept Brasil.

“A ONG ajudava os agricultores pegando a produção, depois fazia a merenda e doava. As notas são verdadeiras, a mercadoria é verdadeira, a merenda é verdadeira, tudo é verdadeiro. Os agricultores são parceiros”, sustenta o advogado, citando um documento, expedido pela 11a Vara Federal, no qual o juízo ressalta a ausência de detalhes na denúncia, como tempo, lugar e modo de execução do crime.

Já em relação à denúncia de improbidade administrativa, o caso remonta a 2001, quando a Prefeitura de Prata firmou um convênio com a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para a construção de sanitários. O processo, movido pelo MPF, apontou suspeitas após uma única construtora vencer várias pequenas licitações na cidade. O montante envolvido era de R$ 70 mil. Embora o caso tenha sido julgado na Justiça Federal, o réu, João Pedro, vem recorrendo no Tribunal Regional Federal da 5a Região (TRF-5) há anos, inclusive pedindo a prescrição do processo, que ainda aguarda julgamento.

O advogado do réu afirma que a construtora vencedora não tinha qualquer relação com João Pedro e que o problema surgiu quando a Funasa apresentou uma planta diferente durante a fiscalização. Segundo ele, em 2014, um laudo da própria fundação confirmou que 100% da obra foi entregue e sem prejuízo ao erário, mas a questão do caráter competitivo da licitação ainda está sendo discutida. “Tanto que a sentença diz que não foi possível verificar enriquecimento ilícito. Essa construtora ganhou várias licitações porque, simplesmente, era uma das poucas que preenchiam os requisitos”, argumenta Rafael Azevedo.

A equipe de reportagem do Jornal A União tentou contato diretamente com João Pedro e com José Leandro, mas ambos apontaram o advogado Rafael Azevedo como porta-voz oficial. Também houve uma tentativa de falar com a ONG Atos, mas, até o fechamento desta edição, a instituição não havia atendido à solicitação de entrevista.

As supostas irregularidades relatadas pelo Intercept Brasil ainda não chegaram, oficialmente, à Justiça. Pela ausência de processo, portanto, nenhum dos citados pela reportagem do site é considerado, formalmente, suspeito ou investigado.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 29 de setembro de 2024.