Inclusão social, segundo o Dicionário Michaelis de Língua Portuguesa, refere-se ao “ato de trazer aquele que é excluído socialmente, por qualquer motivo, para uma sociedade que participa de todos os aspectos e dimensões da vida”. Incluir pessoas com deficiência (PcD), portanto, é uma tarefa que exige ações em múltiplas frentes, desde a saúde até a educação, passando pela infraestrutura urbana e chegando até a conscientização social. Acima de tudo, passa por combater o capacitismo — ou a discriminação em função da deficiência.
“O capacitismo ainda é muito presente na sociedade. As pessoas não me veem simplesmente como Vanesa. Elas me veem como Vanesa, deficiente visual”, diz Vanesa Veloso de Sá, coordenadora pedagógica escolar do Instituto dos Cegos da Paraíba Adalgisa Cunha (Icpac). O depoimento dela ilustra um dos maiores desafios que as PcD enfrentam na busca por inclusão: a ideia de que esse grupo social, tão diverso, não possui as mesmas capacidades que os demais cidadãos. “Os outros não acreditam nas nossas potencialidades. A gente já vem tentando desconstruir essa ideia há algum tempo, porque a pessoa com deficiência é, sim, muito capaz”, afirma a pedagoga, que possui baixa visão.
Calçadas
Em João Pessoa, a gestão municipal vem realizando um trabalho de padronização em 1.516 ruas de diversos bairros
Discurso semelhante é defendido por Iber Câmara, presidente da Associação Paraibana de Deficientes (Aspadef). Ele usa cadeira de rodas e tem uma deficiência nas pernas e nas mãos. Ainda criança, foi alvo de dúvidas quanto ao seu desempenho escolar, mas concluiu os estudos e hoje é advogado — conquista que atribui, em grande parte, à perseverança da mãe. A atuação dos familiares, aliás, é fundamental para a inclusão das PcD. “Ainda há famílias que escondem a pessoa com deficiência e a deixam trancada em casa, sem ter direito ao convívio social. A solução para isso é a população desenvolver a consciência de que aquela pessoa precisa socializar, para mostrar que ela não se resume à deficiência, mas é uma pessoa eficiente”, declara o advogado.
A interação social é um ponto igualmente importante para pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Elaine Araújo, psicóloga e presidente da Associação Integrada Mães de Autistas (A-ima), relata que, entre as pessoas atendidas por sua organização não governamental (ONG), estão adolescentes e jovens de até 25 anos, que possuem nível um de suporte. Integram esse grupo sujeitos com uma autonomia maior que aqueles de níveis dois e três. “Na ONG, eles trabalham a socialização: como entrar no mercado de trabalho, como paquerar, como namorar... Assuntos que talvez sejam irrelevantes para nós, pessoas típicas. Mas, para eles, são necessários”, explica. Segundo ela, porém, ainda há pouca formação, entre os profissionais de saúde, para lidar com pessoas com TEA nessa faixa etária, pois a maior parte das clínicas oferece apoio terapêutico apenas para crianças e para os anos iniciais da adolescência.
"Depois da internet, as pessoas têm consumido mais sobre o assunto, nas redes sociais, o que faz com que tenham mais conhecimento"
- Elaine Araújo
Por outro lado, Elaine celebra um avanço recente, no combate ao capacitismo: a ampla difusão da informação. “Depois da internet, as pessoas têm consumido mais informações sobre o assunto, por meio das redes sociais. Vários famosos também têm mostrado os filhos com diagnóstico de autismo. Isso faz com que tenham mais conhecimento”, acredita. Como consequência, a procura por serviços de saúde que ajudam a diagnosticar o TEA aumentou — o que, por sua vez, demandou a ampliação dos atendimentos terapêuticos.
A psicóloga exalta, assim, as parcerias entre poderes públicos e instituições da sociedade civil voltadas para a inclusão. Um convênio do Governo do Estado com a A-ima, por exemplo, possibilita que a ONG trabalhe com uma equipe multidisciplinar e atenda 360 famílias de pessoas com autismo, oriundas de municípios como João Pessoa, Bayeux, Alagoa Grande e Sapé — e até Goiana, em Pernambuco.
Mobilidade urbana ainda é um desafio
Um dos direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal é o de se locomover livremente no território nacional. E os locais que, nas cidades, melhor simbolizam essa mobilidade são as calçadas. Em João Pessoa, contudo, pessoas que têm a mobilidade reduzida lidam com diferentes empecilhos para transitar pelas ruas. “Algumas calçadas já são adaptadas, mas outras não. Então, a gente tem de disputar a pista de rolamento com os veículos, correndo o risco de sofrer algum acidente. No Centro Histórico de João Pessoa, você não consegue se locomover, porque as calçadas estão invadidas por comércio, uma parte delas tem obstáculos e algumas casas ainda colocam jardins ou árvores muito grandes, que tomam todo o espaço”, expõe o advogado.
De acordo com o secretário de Infraestrutura da capital, Rubens Falcão, a gestão municipal tem buscado melhorar esse cenário. “Estamos asfaltando 1.516 ruas, todas com calçadas padronizadas e acessibilidade, tanto para pessoas em cadeira de rodas, com uso de rampas, como para pessoas com deficiência visual, por meio do piso tátil. Além disso, todas as escolas reconstruídas possuem banheiros adaptados, mesas adaptadas nas salas de aula, corrimãos e rampas — ou elevadores, quando não é possível ter rampas. As novas praças também têm piso tátil e brinquedos adaptados”, detalha. Ainda segundo Rubens, o trabalho de adequação no Centro Histórico é mais demorado. Como a região é tombada, qualquer intervenção precisa de autorização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (Iphaep).
"Para a gente aproveitar a praia, precisa ter um aparato diferente, porque, se for para uma praia normal, a cadeira atola"
- Iber Câmara
Em uma cidade litorânea, como João Pessoa, a instalação de uma infraestrutura inclusiva também deve permitir a vivência da praia. Na última terça-feira (24), as secretarias de Infraestrutura (Seinfra) e de Turismo (Setur) inauguraram o Centro de Atendimento ao Turista Adaptado, espaço dotado de equipamentos de acessibilidade para PcD. Localizada na Avenida Cabo Branco, a estrutura permite, por exemplo, o banho de mar e a prática de esportes adaptados. Até então, a capital contava apenas com uma iniciativa da Assessoria e Consultoria para Inclusão Social (AC social), que oferta, aos sábados, um programa de acesso ao litoral.
Iber Câmara, presidente da Aspadef, ressalta a importância dessas ações para quem usa cadeiras de rodas. “Para a gente aproveitar a praia, precisa ter um aparato diferente, porque, se for para uma praia normal, a cadeira atola”, aponta. Ele revela ainda outro desafio que enfrenta no seu dia a dia: o uso de transporte público. Segundo conta, nem sempre a plataforma elevatória presente nos ônibus funciona corretamente. Além disso, em algumas ocasiões, o veículo para distante do meio-fio, o que dificulta a entrada e a saída da pessoa com cadeira de rodas. Procurada pela reportagem, a Superintendência Executiva de Mobilidade Urbana de João Pessoa (Semob) informou que todos os ônibus da cidade possuem a plataforma elevatória, a qual passa por manutenção periódica, com vistorias diárias. A população também pode acionar a inspeção da Semob, de segunda a sexta-feira, pelo telefone (83) 3213-7188.
Educação formal demanda qualificação de equipes
O debate sobre inclusão social esbarra, inevitavelmente, no acesso à educação. Um dos dilemas enfrentados por familiares de pessoas com TEA, segundo Elaine Araújo, é a matrícula dos filhos nas escolas, principalmente no âmbito privado. “Algumas escolas argumentam que só podem matricular três autistas por sala. Mas, segundo a lei, não se pode negar vaga. Outro problema é que muitos adolescentes deixam de estudar. A gente consegue manter, na escola, crianças e quem está no início da adolescência; mas, quando eles completam entre 13 e 15 anos de idade, os pais já não levam mais”, lamenta. Para ela, parte desse problema vem da falta de capacitação dos profissionais que lidam com os estudantes.
A coordenadora pedagógica escolar do Icpac também aponta uma necessidade semelhante em relação a pessoas cegas e com baixa visão. “Nas escolas, a inclusão está caminhando, mas a passos lentos, ainda. Já existem, hoje, salas de recursos multifuncionais voltadas ao Atendimento Escolar Especializado [AEE], que oferecem apoio no contraturno, mas as pessoas não estão capacitadas para receber alunos com deficiência visual. Isso porque os professores — e, às vezes, até os responsáveis pelas salas de AEE — não conhecem o Sistema Braille, que é o nosso código de leitura e escrita”, discorre Vanesa.
O caminho para tornar a educação mais acessível, portanto, passa pela qualificação de professores, cuidadores e demais agentes envolvidos. A Fundação Centro Integrado de Apoio à Pessoa com Deficiência (Funad) é um dos órgãos, na Paraíba, que atuam com esse objetivo. A presidente da instituição, Simone Jordão, pontua os esforços empreendidos para garantir a permanência das PcD dentro do sistema de ensino.
“A Funad tem um calendário anual de formação, tanto no AEE, direcionado a pessoas que trabalham diretamente nas salas de recursos, como a professores das salas comuns. Desde o ano passado, a gente vem em um movimento forte para qualificar todos os cuidadores da rede do estado e, por meio de uma parceria com o Instituto Alpargatas, os cuidadores de diversos municípios paraibanos. Neste ano, dos 415 profissionais de apoio escolar do estado, nós já capacitamos cerca de 300. Já na rede municipal, somente na última semana, tivemos a formação de 187 pessoas, de 11 cidades diferentes — e essa já foi a terceira turma”, destaca Simone.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 29 de setembro.