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É preciso acolher, ouvir e orientar

publicado: 17/06/2024 09h31, última modificação: 17/06/2024 09h31
Resolução de caso emblemático em escola da capital indica como tratar problema de maneira mais sensível e eficaz
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Atitudes de quem pratica bullying, segundo a psicopedagoga Anna Beatryz Vieira, refletem, muitas vezes, questões sociais e familiares, além de desafios emocionais do jovem | Arte: Bruno Chiossi

por Lílian Viana*

Quem vê o médico veterinário Rafael Fonseca, de 34 anos, casado e prestes a ser pai, nem imagina que ele poderia não estar aqui para viver e contar sua história. Entre 2007 e 2008, tudo o que ele queria era desaparecer, após ter sido reconhecido como o mentor do grupo Bulicida, que exigia providências em relação a casos de bullying e ameaçava alunos, professores e funcionários de uma escola particular de João Pessoa. Esse grupo, na verdade, nunca existiu. Foi inventado por Rafael para fortalecer as ameaças.

Trauma
Abalado por agressões e constrangimentos, Rafael usou as redes sociais para criar um grupo fictício e fazer ameaças ao local onde estudava, encapuzado e empunhando armas

Quando gerou pânico em familiares, que chegaram, inclusive, a mudar seus filhos de escola, o caso ganhou repercussão local e nacional. Mas essa história começa bem antes, em uma outra escola da capital. Lá, quando tinha 11 anos, Rafael sofreu bullying grave, com agressões físicas e constrangimentos rotineiros. “Isso gerou uma ferida interna, uma espécie de marca, que eu venho chamando de ‘pós-bullying’, e me gerou revolta na segunda escola, onde estudei na adolescência”, relata. 

Esse “pós-bullying” é o que os especialistas chamam de Transtorno de Estresse Pós-Traumático, um efeito tardio que pode ocorrer em vítimas de bullying. Como Rafael não sabia nomeá-lo, também não tinha noção de que precisava de ajuda. “Eu sentia uma revolta, inclusive interpretando de forma exacerbada situações de bullying que aconteciam com outros estudantes, na segunda escola”.

Então, com gatilhos em ebulição, o jovem decidiu criar uma página nas redes sociais e publicar imagens intimidadoras, encapuzado e empunhando armas, enquanto ameaçava invadir a escola. “Eu tinha sempre a sensação de que era um problema geral, em todos os lugares, até chegar ao ponto de perder o medo e a vergonha, e encarar o problema de uma forma que foi se tornando violenta, por não possuir, na adolescência, o controle emocional de um adulto”.

Orientação e apoio

Para a psicopedagoga Anna Beatryz Vieira, situações desse tipo devem ser abordadas de maneira mais delicada, sem pânico. “Não é certo taxar, de cara, aquele que pratica o bullying como alguém que simplesmente escolhe causar certa dor ou sofrimento a alguém. A verdade é que esse comportamento é muito mais complexo e, muitas vezes, está relacionado a questões individuais, sociais e familiares do indivíduo, que pode estar vivendo seus próprios desafios emocionais”, alerta a profissional.

Na época do caso de Rafael, há 17 anos, a escola “tateou” algumas medidas para manter a calma de todos, já que pouco se sabia, ainda, sobre o assunto. Mas esqueceu um detalhe crucial: acolher e ouvir, em vez de jogar pedras e demonizar. Porque, no fundo, as ameaças eram um pedido de socorro de um jovem que não conseguia superar sua dor. “São alunos que necessitam de maior orientação ao que está acontecendo, muito mais do que a necessidade de punição. Eles precisam de apoio também”, defende a coordenadora pedagógica Michelle Alves.

Psicólogos e promotores do MPPB ajudaram na recuperação do jovem

Rafael tentou se fazer ouvido. Tentou tanto, que acabou desistindo e, por causa disso, sentindo-se inseguro, ansioso e culpado. Até que, em sua confusão mental, decidiu ameaçar a escola, na esperança de que, assim, o bullying passasse a ser levado a sério. Também começou a tomar remédios de forma indiscriminada e sem acompanhamento médico, ao ponto de precisar de internação.

"Para o estudante, ficam as lições e a certeza de que vale a pena buscar ajuda de profissionais sérios e comprometidos. Essa conduta pode salvar uma vida"
- Soraya Nóbrega

“A pressão era grande para ‘acabar’ com aquele ‘monstro’, ‘terrorista’ que causou tanta intranquilidade na sociedade, e o exemplo mais correto, na visão de muitos, seria mais violência. Não existia, para ele, mais sentido em viver. Por essa razão, decidiu que seria melhor morrer. Tentou o suicídio, ingerindo uma grande quantidade de remédio, tendo que ser hospitalizado com urgência. Felizmente, fracassou, porque foi encontrado por sua mãe, que, com o instinto maternal, pressentiu o perigo e socorreu seu filho em tempo hábil para o hospital”, conta a promotora da Infância e Juventude do Ministério Público da Paraíba (MPPB), Soraya Nóbrega, que, junto ao também promotor Alley Escorel, acompanhou o caso de Rafael e o ajudou.

Após a alta hospitalar, e com o apoio da família e dos promotores, o jovem se recuperou. O segredo para a mudança? Acolhimento. Ele foi assistido por psicólogos e psiquiatras, que o ajudaram a entender seus conflitos. “Era preciso que ele tivesse consciência da prática de conduta conflituosa com a lei e de que a medida ‘punitiva’ imposta lhe recomendava uma reflexão profunda sobre seus atos e a consequência destes. Mas era fundamental que essa medida visasse sua recuperação e tivesse um caráter ressocializador”, explica Soraya.

Segundo a promotora, a medida socioducativa, que incluía a prestação de serviços gratuitos na Promotoria da Infância e Juventude, foi cumprida com entusiasmo por Rafael. Nesse período, ele produziu vídeos sobre vários temas, como adoção, violência doméstica e abuso sexual. “Falar me ajudou bastante. É como se removesse aquela marca que estava presa a mim, o trauma foi desaparecendo até sumir. O tempo cura e, quando se fala sobre o trauma, a cura é muito mais rápida”, resume Rafael.

Para Soraya, o caso trouxe uma oportunidade de aprendizado para o MPPB, especialmente em relação à abordagem e ao conhecimento do bullying, bem como à melhor forma para sua prevenção e enfrentamento: “E, para o estudante, enquanto protagonista dessa história, ficam as lições e a certeza de que vale a pena buscar ajuda de profissionais sérios e comprometidos. Essa conduta pode salvar uma vida”.

Pais e instituições de ensino devem se manter alertas e oferecer suporte

Entre crianças e adolescentes em interação, desentendimentos são comuns, seja em brincadeiras ou atividades em sala de aula; a diferença para o bullying está na frequência desses atos e, principalmente, nas consequências. Para Anna Beatryz e Michelle Alves, o combate ao problema é uma questão de esforço coletivo, que deve envolver pais, professores e funcionários da escola antes mesmo de se identificar um caso.

"A família e a escola precisam trabalhar juntos para criar um ambiente seguro e acolhedor para todos"
- Anna Beatryz Vieira

Na visão das especialistas, a família precisa estar atenta ao comportamento do jovem, seja ele um possível agressor ou vítima, já que ambos os perfis precisam de apoio psicológico. “É necessário que os pais conheçam, de fato, seus filhos e se envolvam com mais diálogo, maior participação na rotina e manutenção permanente do contato com as escolas”, aconselha Michelle. Já Beatriz reforça que as instituições de ensino também devem estar alertas sobre o tema, promovendo uma cultura de respeito, empatia e tolerância entre os alunos, além de oferecer suporte para os que cometem e os que sofrem bullying. “A família e a escola precisam trabalhar juntas para criar um ambiente seguro e acolhedor para todos”, resume.

Rafael chamou atenção, ainda, para a importância de um especialista, na própria escola ou acionado por familiares, que consiga enxergar além do que o jovem expressa em uma conversa simples. “Creio que somente profissionais capacitados podem compreender melhor a mente de uma criança ou adolescente e buscar, assim, detectar o problema. Existem situações em que amigos próximos também podem ser um canal de comunicação mais fácil, informando para diretores e psicólogos sobre o que ocorre”, detalha, antes de frisar que, apesar do amparo familiar, “não deve ser esperado que os pais detectem isso em casa; é ainda mais difícil, principalmente pela vergonha. Somente um especialista tem técnicas para decifrar o que se passa com aquela criança ou adolescente”.

Em 2008, em meio à repercussão do caso de Rafael, foi sancionada a Lei Municipal no 11.381, com a criação de um programa de combate ao bullying nas escolas municipais da capital. Naquele mesmo ano, a Promotoria da Infância do MPPB conseguiu que as denúncias contra bullying em todo o país pudessem ser feitas por meio do Disque 100, da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. Outro efeito do episódio é que passaram a ser admitidas medidas socioeducativas para menores de idade no estado.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 16 de junho de 2024.