Notícias

Direitos

ECA completa 33 anos com desafios

publicado: 10/07/2023 14h11, última modificação: 10/07/2023 14h11
Especialistas defendem a necessidade de se discutir e garantir que crianças e adolescentes sejam sujeitos de direitos
1 | 3
Fotos: Casa Pequeno Davi/Divulgação
2 | 3
Casa Pequeno Davi mantém investimento em inclusão de crianças e adolescentes
3 | 3
Iniciativa da Casa Pequeno Davi contribuiu para formação de mais de 10 mil jovens
Crianças (1) - Foto Casa Pequeno Davi-Divulgação.jpg
Crianças (2) - Foto Casa Pequeno Davi-Divulgação.jpg
Crianças (3) - Foto Casa Pequeno Davi-Divulgação.jpg

por Carol Cassoli*

Criado para defender os direitos das crianças e adolescentes brasileiros, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa, esta semana, mais um ano. E, mesmo 33 anos após sua publicação, o estatuto ainda enfrenta desafios significativos para a garantia de tratamento digno aos jovens, como a mitigação da violência infantil.

São 33 anos de história e duas proposições principais: garantir que as crianças e adolescentes sejam tratados como sujeitos de direitos; e desenvolver políticas de atendimento à infância e à juventude, a partir da participação civil e do ideal constitucional de descentralização político-administrativa, que dá autonomia para que os estados elaborem estratégias de acordo com suas realidades.

No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente é o principal instrumento normativo para os direitos da infância e juventude, que, antes de sua criação, era tratada como mero objeto da ação familiar e do Estado. E, devido à completude de suas propostas, o estatuto é tido como referência em todo o mundo para o cumprimento dos direitos das crianças e adolescentes enquanto sujeitos integrantes do corpo social. É por isso que, em geral, o ECA também é referenciado como um marco para a organização dos direitos humanos no Brasil.

Quando o estatuto foi criado, em 13 de julho de 1990, a conselheira tutelar Verônica Oliveira era adolescente e por isso mesmo já entendia a importância da existência de algo como o ECA, sobretudo porque sabia que sua criação era resultado da luta de organizações populares como o Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua. Mas essa não foi a única coisa que Verônica notou quando o estatuto foi lançado, pois percebeu que junto com sua criação, uma luta foi substituída por outra.

“13 de julho de 1990: dia histórico. Início de uma nova luta, agora pela efetivação dessa lei que é a mais atingida negativamente por uma sociedade que sequer se dá  ao trabalho de ler o ECA. A falta de compreensão de uma sociedade adultocêntrica, dificulta essa efetivação acontecer de forma integral”, avalia a conselheira tutelar.

Psicóloga clínica e escolar, Aretha Paiva explica que, embora muito se tenha avançado nas últimas três décadas, ainda há um longo caminho pela frente em direção à dignidade dos pequenos brasileiros. Segundo ela, ainda há na sociedade uma percepção primitiva de que crianças e adolescentes são sub categorias de adultos, o que efetiva padrões de comportamentos opressores, violentos e contextos anti-pedagógicos nas relações entre responsáveis e crianças. Por isso, o primeiro ponto a se debater é, também, a mais famosa proposição do ECA.

“Precisamos discutir a dificuldade da sociedade em perceber as crianças e adolescentes como sujeitos de direito. Mesmo o ECA existindo há 33 anos e já tendo avanços significativos na legalização de direitos, ainda há uma omissão do poder público na implementação de políticas que realmente concretizem esses direitos previstos”, comenta.

Contexto

Quando o ECA foi promulgado, a sociedade era outra. Hoje, no entanto, a maioria dos desafios os quais o estatuto se propõe a enfrentar ainda são os mesmos (e muitos). “Situações de violência doméstica e sexual, contextos de ausência da família e famílias disfuncionais; uso excessivo de equipamentos eletrônicos; falta de diálogo, afetividade e escuta significativa entre responsáveis e as crianças e adolescentes são alguns dos obstáculos enfrentados por esse grupo dentro de casa”, elenca.

Neste contexto, a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) existe, desde 2009, com o intuito de mapear a saúde e as tendências de convívio entre os adolescentes brasileiros para nortear as políticas voltadas a este público. E os dados apresentados pela última edição do levantamento apontam melhorias na realidade dos jovens brasileiros mas, também, temas que merecem atenção.

Cenário local

Em João Pessoa, por exemplo, o percentual de alunos de escolas públicas matriculados no 9° ano cujos pais sabiam o que eles estavam fazendo em seu tempo livre subiu de 57,2% em 2009 para 78,4% em 2019. Em contrapartida, o número de alunos que faltaram sem a permissão dos pais também cresceu, indo de 18% na primeira edição do levantamento para 21% na última edição.

A PeNSE também evidenciou um dado que já se destacava em outras edições: o Brasil é um dos países com as mais altas taxas de violência dentro das escolas e esse cenário é potencializado pela prática de bullying; agressão da qual 61,3% dos estudantes paraibanos oriundos do ensino público e 62,2% dos estudantes de instituições privadas já foram vítimas. E a falta de diálogo dentro de casa pode contribuir para o agravamento deste panorama, já que 38,3% dos adolescentes pessoenses sentem que seus pais não compreendem suas preocupações e anseios.

Junto com a família, a escola é uma das principais entidades capazes de transformar este cenário. Segundo o estudo “A escola como espaço de socialização da cultura em direitos humanos”, desenvolvido no Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba, as escolas são vistas como fundamentais para a concretização dos direitos humanos, porque cabe a elas estimular e incentivar ações artístico-culturais voltadas ao combate do preconceito, da discriminação e da intolerância não apenas no âmbito escolar, mas na vida. Por esse motivo, as escolas são porta de entrada para conhecimento e reconhecimento dos direitos humanos no Brasil.

Educação e ações de enfrentamento surtem efeitos

Em João Pessoa, a Casa Pequeno Davi (CPDavi) é uma Organização da Sociedade Civil (OSC) que se compromete com a promoção dos direitos de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Localizada no Baixo Roger, a casa, que na próxima semana completa 38 anos, tem se dedicado ao desenvolvimento de iniciativas de educação integral, a partir de ações educacionais, artísticas e esportivas.

A Casa Pequeno Davi já transformou a vida de mais de 10 mil jovens. O educador social Matheus Felipe Pereira, de 24 anos, é um deles. “Sou morador do Roger e conheço a CPDavi desde que me entendo por gente”.

Como a mãe do educador era cozinheira voluntária na casa, Matheus Felipe entrou no projeto cedo, aos cinco anos de idade e se descobriu na música. Entre aulas de flauta doce, violão e guitarra, o educador social aprendeu a ler tablaturas e conheceu técnicas musicais.

“Vivia tocando instrumentos em casa, na rua, na instituição. Foi quando tive a  oportunidade conhecer alguns lugares através de apresentações. Conheci um grande shopping da cidade, lugar que, até então, não era de fácil acesso para pessoas em situação de vulnerabilidade social”.

Para Matheus, o conjunto de atividades realizadas foi responsável por sua formação cidadã. “Muito do que sou hoje (um ser humano empático, que sabe sobre seus direitos, educado), foi graças à Casa Pequeno Davi. O aprendizado sempre é uma troca e hoje sou um dos que realizam essa troca com outras crianças e adolescentes”, diz. Matheus teve a oportunidade de voltar como educador e, hoje, alimenta o ciclo de formação da CPDavi com aulas para as linguagens de Letramento Digital e Social. 

Pandemia e desafios

No ano de promulgação do ECA, uma a cada cinco crianças não estava na escola. Ao longo dos últimos 33 anos, no entanto, têm-se reunido esforços para mudar este cenário, que até 2019 apresentava resultados mais positivos e demonstrava que a taxa de jovens sem matrícula escolar fora de 20% a 4,2%.

A psicóloga escolar Aretha Paiva enfatiza este outro ponto de atenção para o qual autoridades e sociedade civil devem estar atentos: os momentos em que a Covid-19 interferiu na rotina da população. “Durante a pandemia, a evasão escolar e a violência doméstica apresentaram índices muito altos e, com a falta da escola enquanto lugar de proteção à criança e ao adolescente e de socialização e aprendizagem, se abriu espaço para que estes vivenciassem ainda mais contextos de violência, negligência e vulnerabilidade”, explica.

Em âmbito nacional, os dados sobre violência infantil preocupam. A cada hora, pouco mais de 28 crianças de até seis anos sofrem violência. São 673 registros por dia, de acordo com a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. Em relação a 2022, as violências de cunho sexual contra crianças cresceram 70% apenas nos quatro primeiros meses deste ano, quando o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania divulgou que, entre janeiro e abril, 69,3 mil denúncias e 397 mil violações dos direitos humanos desta população foram registradas através do Disque 100.

Frente ao alarmante contexto de violência enfrentada por jovens dentro de casa, a Secretaria de Estado do Desenvolvimento Humano da Paraíba (Sedh) tem desenvolvido serviços voltados para o combate às violências contra a criança, como a Política de Combate à Violência Sexual de Criança e Adolescentes dos 26 Centros de Referência Regionais Especializados em Assistência Social Regionais (Creas); o serviço próprio de denúncia do Disque 123; e o Centro de Atendimento Integrado (CAI), executado de forma intersetorial.

A Sedh também oferece assessoramento a toda a Paraíba, com orientações, suporte e apoio técnico para o acompanhamento de abusos e exploração sexual de crianças e adolescentes. Com as mudanças notadas após a pandemia, a conselheira tutelar Verônica Oliveira afirma que é necessário tomar fôlego para recomeçar. “Nesse período pós-pandêmico, é preciso mais uma vez começar de novo. Dessa vez, certamente será mais fácil, pois não permitimos a destruição da democracia e estamos restabelecendo o estado democrático de direito onde crianças e adolescentes como cidadãos e cidadãs de direito voltaram a ter voz”, sinaliza.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 9 de julho de 2023.