No dia 4 de outubro de 2021, uma queda global dos aplicativos WhatsApp, Facebook e Instagram parou o mundo. Foram mais de seis horas fora do ar, o suficiente para provocar prejuízos financeiros e deixar milhões de pessoas “sem chão”, e um prato cheio para a criação de memes. Entre eles, um ganhou destaque: a família se reencontrando e conversando fora das telas. A brincadeira arrancou gargalhadas de muita gente, mas abriu espaço para reflexões sobre a nossa dependência das redes sociais. Estamos, realmente, passando dos limites e deixando de lado a convivência com outras pessoas “de carne e osso”?
Nos dias de hoje, em que selfies e hashtags são praticamente a moeda corrente, é possível sobreviver sem as mídias sociais? É difícil pensar em uma rotina sem acompanhar as novidades do Instagram e Facebbok, por exemplo? Mesmo sendo um fenômeno ainda raro de se ver, algumas pessoas estão determinadas a abrir mão das redes sociais para viver experiências reais no mundo off-line. São os chamados eremitas digitais ou low profile, para usar um termo mais conhecido no mundo virtual, pessoas cansadas de viver um tempo em que há notificações urgentes e demandas para ontem, e decidem abrir mão das relações construídas com base na internet para se dedicar ao “olho no olho”.
Perdendo tempo
É o caso de Maria Gabriela Moura, que decidiu apagar todas as redes sociais em agosto do ano passado. Aos 17 anos, Gabriela percebeu que perdia muito tempo com conteúdos que não acrescentavam muito à sua rotina. “O meu celular tinha um aplicativo que me mostrava quanto tempo eu passava nas redes sociais e, quando eu vi que ficava quatro horas por dia, tive a certeza que precisava sair”, explica.
Nas primeiras semanas sem interação digital, Gabriela relata que sentiu falta, já que fazia parte da rotina dela acompanhar os vídeos no Tik Tok. Mas, depois de reorganizar suas atividades, ela percebeu que as atividades analógicas eram bem mais interessantes. Assim, decidiu, também, diminuir o uso do celular. O aparelho, inclusive, nem costuma ficar por perto. “Depois que saí, não tive mais vontade de voltar. Foi bem libertador. Ainda tenho WhatsApp no aparelho para falar com a minha mãe, por exemplo. Mas, mesmo assim, demoro uns três dias para responder. Acho melhor falar por ligação, que é mais rápido”, complementa a estudante do terceiro ano.
Sem dedicar boa parte do seu dia para as redes sociais, ela passou a ler com mais frequência. Em janeiro, quando ainda estava de férias, leu sete livros. Gabriela ainda intensificou os estudos para se preparar para o Enem deste ano, já que pretende cursar Medicina. E, mesmo com o tempo mais preenchido, a estudante se sente disposta e focada. “As redes sociais são superficiais e, ao mesmo tempo, cansativas. Depois de ficar horas vendo vídeos e fotos na internet, eu me sentia esgotada e mal conseguia prestar atenção às aulas. Agora, consigo me concentrar mais rápido e dar conta de mais atividades, sem me sentir cansada”, comemora Gabriela.
“Para mim, as redes sociais não contribuem para meu crescimento”
Nenhuma fase é mais marcada pela necessidade de autoafirmação e pertencimento do que a pré-adolescência – que vai dos 10 aos 14 anos de idade, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Entretanto, para Lívia Luna, 13 anos, esse pertencimento precisa ser fora das redes. Considerada uma nativa digital, por ter nascido após a consolidação da internet comercial, ela é ambientada com a tecnologia e, mesmo assim, optou por não focar suas interações no meio digital.
Aluna do 8º ano do Ensino Fundamental, ela não se sente nem um pouco deslocada com a decisão. “Para mim, as redes sociais não contribuem para o meu crescimento. Tiram meu tempo e não me oferecem nada. Então, por que eu me sentiria fora do padrão? Pelo contrário. Eu me sinto mais livre e mais tranquila para buscar meus objetivos”, comenta.
Entre os objetivos de Lívia está a dança competitiva. Para isso, ela se dedica, aos menos, quatro horas por semana. “Tenho aulas duas vezes por semana, mas, muitas vezes, eu também vou outros dias para melhorar algumas técnicas”, conta. Outra diversão que ela faz questão de investir é o encontro frequente com as amigas, fora da escola. “Sempre nos vemos na casa uma da outra e é garantia de momentos divertidos”, complementa Lívia.
Mas, ao contrário de Lívia, todas as suas amigas gostam de usar o celular durante os encontros. Para não ficar de fora das conversas do grupo, Lívia tenta manter um equilíbrio e incentiva as amigas a ficarem um tempo longe das telas. “Aceito ficar um pouco no celular, com elas, e depois proponho atividades mais divertidas, como jogar bola, dançar e cantar.”
Segundo psicóloga, conexões reais são mais duradouras e prazerosas
Para a psicóloga escolar, Ingridy Leite, o processo de construção da personalidade das crianças, adolescentes e jovens é realizado por meio da interação com outras pessoas. Por isso, a interação sem a presença de telas tem o poder de criar conexões reais e duradouras, diminuindo o risco de desenvolver os transtornos mentais como ansiedade, depressão e crises de pânico, por exemplo. “Quando a gente abre mão das redes sociais para investir em conexões reais, a gente está criando mecanismos importantes de autorregulação – habilidade de lidar com as frustrações e obstáculos do cotidiano”, explica Ingridy.
“É muito fácil se viciar em redes sociais, porque o cérebro começa a gostar daquela felicidade sem esforço. Mas, ela é superficial e rápida. Então, para sentir novamente isso, eu preciso acessar mais e mais. Já a conexão real necessita de esforço das duas partes, é mais dispendiosa e frustrante, algumas vezes, já que nem sempre o outro deseja se conectar como você deseja e, diferente das redes sociais, você não pode, simplesmente, bloquear a pessoa e procurar alguém que se adeque à sua bolha. Mas, o que as pessoas têm esquecido é que as conexões reais são fortes, são duradouras e, a longo prazo, muito mais prazerosas e leves”, complementa Ingridy.
Outro ponto positivo para quem decide ficar longe da internet é a possibilidade do tempo de qualidade entre amigos e familiares. Colocar em dia a leitura de um livro ou se concentrar na brincadeira com a neta Clarice, de quatro anos, são preciosidades que o médico natalense, Marconi Rocha, de 65 anos, não troca pelas rede sociais.
Revezando-se entre Natal e João Pessoa – onde mora sua filha e sua neta – ele foi uma das primeiras pessoas da família a adquirir celular e a conhecer as redes sociais, mas não teve paciência para nenhuma plataforma. “Uma vida inteira dedicada a conhecimentos sólidos por fontes confiáveis e argumentos bem construídos, não consigo consumir as informações das redes sociais. Prefiro o contato presencial, os livros, filmes e boas atividades culturais”, comenta.
Segurança
Utilizando celular para funções básicas, como ligação, por exemplo, Marconi Rocha também considera o ambiente offline mais seguro. “Há uma série de fraudes, cada vez mais sofisticadas nessas redes sociais. Além disso, há uma necessidade de se expor constantemente, e eu não suporto”, declarou.
Seu Marconi faz parte de uma minoria que decidiu se manter fora das mídias sociais, mas, no mundo cada vez mais conectado, essa interação digital parece estar longe de mudar. Segundo dados oficiais da empresa Meta – dona do Instagram, Facebook e WhatsApp – 5,04 bilhões de pessoas estão conectadas às redes sociais em todo o mundo, sendo o Brasil o terceiro país que mais usa redes sociais no mundo, atrás apenas da Índia e da Indonésia.
O jeito expansivo do brasileiro pode ser um fator para explicar o fenômeno.
“O consumo de plataformas de redes sociais é sempre um processo cultural, logo, varia em cada país e até mesmo em cada região de um mesmo país. No caso do Brasil, uma tendência que se verifica é que nos sentimos muito à vontade para exibir diversas nuances da nossa própria vida, embaçando as fronteiras entre o público e o privado”, explica Cândida Nobre, doutora em Comunicação e especialista em mídias digitais.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 10 de março de 2024.