Há exatos 50 anos morria aquele que, durante mais da metade do século 20, foi considerado o “pai da pobreza” e o “patrono da assistência social” na capital da Paraíba e adjacências. José da Silva Coutinho ou, simplesmente, Padre Zé – como era popular e carinhosamente conhecido –, consagrou-se como o sacerdote da caridade, cujas ações beneficentes eram voltadas não só ao cuidado com os mais necessitados, mas também à humanização e ao reconhecimento dos pobres como uma prática cristã.
Os passos de Padre Zé, segundo afirma o jornalista e escritor José Nunes da Costa, em seu livro “Padre Zé – De Mãos Estendidas”, foram guiados pelos ensinamentos de Jesus Cristo, “que largou tudo para vivenciar e ensinar o evangelho”, acolhendo aqueles que, à época, eram desprezados e viviam às margens da dignidade humana e da sociedade civil.
Uma das obras feitas por Padre Zé foi o Instituto São José, que abrigava pessoas carentes
“Padre Zé Coutinho sonhava com uma Igreja que faz opção pelos pobres, que perdoa seus integrantes que cometem erros. Com suas práticas caritativas, proporcionou uma nova dimensão da fé. Sempre caridoso, fazia questão de proporcionar aos pobres o fruto do qual saboreavam os mais abastados financeiramente”, diz o escritor ao ressaltar que o religioso contribuiu de forma significativa para que “a igreja solidária se realizasse na Paraíba”.
O exercício do sacerdócio de Padre José Coutinho, iniciado em 1922, acrescenta o escritor, foi – e continua sendo – modelo no que diz respeito à missão de bem servir ao próximo. “Nunca desejou acumular riqueza, pois abdicou de benefícios para estar junto aos pobres. Certa vez, Dom José Maria Pires, com quem conviveu, afirmou que, à semelhança de Padre Ibiapina e uns outros, Padre Zé foi um desses sacerdotes que se dedicou de corpo e alma ao serviço do evangelho, mesmo correndo o risco de ser mal interpretado”, destaca José Nunes.
Boa parte das obras do líder religioso que se tornara José Coutinho se deu nos bairros periféricos de João Pessoa, com destaque para a região que hoje compreende o bairro Mandacaru, onde a situação de vida da maior parte dos moradores era precária e calamitosa.
Com o objetivo de ampliar as ações sociais em prol das pessoas financeiramente desprovidas e socialmente desfavorecidas, Padre Zé, com a ajuda de amigos, autoridades, benfeitores e fiéis, protagonizou a criação do Instituto São José – que, dentre outras atribuições, servia como um abrigo para estudantes, comerciários, funcionários públicos, pessoas doentes vindas de cidades do interior paraibano para tratamento nos hospitais da capital, que não tinham condições para arcar com hospedagem em repúblicas e pensionatos. Fundado em 1935, o local foi erguido administrativamente (considerando a gestão) com a participação de nomes importantes da sociedade paraibana.
“Podemos destacar algumas pessoas que ocuparam lugar de destaque em diversas áreas, a exemplo do médico e ex-deputado estadual Antônio Ivo de Medeiros, do desembargador Simeão Cananéa, do jornalista Nathanael Alves, do procurador e jornalista Manoel Raposo, de Augusto Lucena, que foi prefeito do Recife, e tantos outros”, relembra José Nunes.
Alguns anos depois, em 1965, com o crescimento da demanda de atendimentos na Casa do Padre, como ficou conhecido o Instituto São José, foi fundado o Hospital Padre Zé. De acordo com os relatos trazidos pelo escritor, os acadêmicos de medicina Genival Guerra e Ricardo Rosado Maia ajudaram nesse processo de transformação do abrigo em unidade hospitalar.
Apesar da boa vontade e do espírito caridoso, as condições para a realização dos atendimentos aos enfermos e moribundos não eram as melhores. “Como não tinha ambulância, recolhia os enfermos nas periferias da cidade em uma carroça puxada por animais”, conta Nunes, frisando que para manter as obras de caridade, recorria às doações.
Conforme os registros e as memórias do imaginário coletivo pessoense, o próprio José Coutinho percorria os locais de maior movimentação, como porta de cinema, clubes sociais e de festa, bares, restaurantes, além de casas de autoridades e lideranças políticas para pedir esmolas ou “cobrar ações efetivas e duradouras em favor dos necessitados”.
Relação com a imprensa e o trabalho social até o fim da vida
Além das atividades eclesiásticas – já que foi capelão da Ordem Terceira do Carmo, Vigário da Catedral Metropolitana, entre outras funções, por determinação do Arcebispo Dom Adauto de Miranda Henriques –, Padre José Coutinho também atuou em alguns veículos de comunicação da imprensa paraibana.
“Durante muitos anos, foi diretor do jornal católico ‘A Imprensa’ e, na Rádio Tabajara, manteve o programa ‘Vinte e cinco minutos com o Padre’, de enorme sucesso e de grande audiência na época”, relembra o escritor ao citar que o “pai dos pobres” mantinha uma boa relação com os profissionais de comunicação que também o ajudavam, em determinadas circunstâncias, nas ações de caridade.
Prisão
O legado de Padre José Coutinho também foi marcado por injustiças e perseguições, tendo sido a sua prisão, na década de 1940, um dos episódios mais marcantes da sua trajetória. De acordo com o jornalista e escritor José Nunes, suas práticas de apoio às famílias carentes, com distribuição de comida e constantes cobranças ao Poder Público por melhorias nos serviços de assistência à população mais pobre, o levou a ser acusado de comunista.
“Ele também chegou a ser preso, em 1943, sob acusação de colaborar com o nazismo”, narra o jornalista ao enfatizar que a prisão do padre se deu no 15º Batalhão de Infantaria Motorizado - Regimento Vidal de Negreiros, em Cruz das Armas, na Zona Oeste de João Pessoa.
“Sua prisão teve muita repercussão junto à população da cidade de João Pessoa. Quando deixou o quartel do Exército, algum tempo depois sem que ninguém tenha provado nada contra ele, em demonstração de apoio, centenas de pessoas percorreram as ruas da cidade até em frente ao Palácio do Governo”, acrescenta José Nunes, responsável por assinar a biografia de Padre Zé.
Morte
Não é segredo que os dias que antecederam a morte de Padre José Coutinho foram de grande comoção. Além do sentimento de perder uma das figuras mais humanas, caridosas e espirituosas que a cidade pessoense conhecera, a incerteza com relação ao futuro das instituições por ele erguidas também preocupava aqueles que eram do seu convívio.
Diagnosticado com artrite crônica e com a idade avançada, o sacerdote começou a sentir dificuldades para realizar as atividades que lhe enchiam os olhos de brilho e o coração de afeto. Mesmo assim, conta Nunes, o padre não abriu mão de ajudar quem mais precisava.
“Mesmo com a saúde comprometida e com a recomendação dos médicos devido ao seu estado de saúde, no dia 2 de novembro de 1973, feriado de Finados, foi recolher donativos no Cemitério Senhor da Boa a Sentença, como fazia todos os anos, quando passou mal e precisou ser levado ao hospital”, traz à tona o escritor, lembrando que, três dias depois, em 5 de novembro daquele mesmo ano, o padre veio a óbito.
A causa mortis foi parada cardíaca congestiva e cardiopatia hipertensiva. Quando a notícia da morte de Padre de Zé se espalhou pela cidade, uma multidão se aglomerou na Praça Dom Adauto, também conhecida como Praça do Bispo – onde está instalada a sede do Instituto São José e a Igreja do Carmo, onde o corpo do religioso foi velado.
“Neste dia, logo cedo, as pessoas começaram a ocupar a Lagoa do Parque Solon de Lucena e ruas adjacentes à Igreja do Carmo. Enquanto a urna funerária seguia em carro do Corpo de Bombeiros”, diz José Nunes ao falar sobre o cortejo que seguiu, há exatos 50 anos, em direção ao Cemitério da Boa Sentença, no Varadouro, onde o corpo de Padre Zé foi sepultado. Até hoje, vários fiéis visitam o túmulo como forma de homenagear e fazer preces àquele que dedicou a sua vida para cuidar da vida das pessoas mais pobres.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 05 de novembro de 2023.