“Deveríamos desenvolver mentes não-humanas que eventualmente nos superassem em número, fossem mais espertas e nos substituíssem? Devemos arriscar perder o controle de nossa civilização?”. A citação faz parte de uma carta aberta, publicada pelo Future of Life, organização internacional formada por especialistas em inteligência artificial e executivos da indústria de tecnologia que busca reduzir o risco de grandes tecnologias para a humanidade e foi publicada em março de 2023, logo após o lançamento do ChatGPT.
Assinada por nomes de grande peso no mundo digital, como Elon Musk, dono da Tesla e do Twitter, e Steve Wozniak, um dos fundadores da Apple, o documento se tornou um grande sinal de alerta para riscos que vão desde a disseminação de propaganda falsa e desinformação, a potencial substituição da mão de obra humana e a perda do controle da civilização.
Ainda é cedo para afirmar qual será o total alcance dessas transformações e qual efeito nas relações pessoais, educacionais, profissionais e até na própria democracia, mas é inegável que o avanço dessas tecnologias desperta dúvidas razoáveis, especialmente diante de um mundo cada vez mais conectado. Mas antes, é preciso entender o que é Inteligência Artificial (IA).
Thaís Gaudêncio, Mestra em Modelagem Computacional, doutora em Ciência da Computação e pesquisadora de Inteligência Artificial na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), cita Stuart Russel e Peter Norvig, autores do livro “Inteligência Artificial: Uma Abordagem Moderna” publicado em 1995, para explicar o que significa o termo. “Simulando a forma de pensar como um humano; agir como um humano, ou que existe um jeito racional de agir e pensar. Essas duas últimas entendem que existe um jeito ‘certo’ de pensar e agir, que é ensinado para uma máquina, a partir da experiência ou de premissas definidas por humanos”, afirmou.
Já o professor Thiago Moura, Mestre e Doutor em Ciências da Computação e pesquisador do Polo de Inovação do Instituto Federal da Paraíba (IFPB), em João Pessoa, define Inteligência Artificial como uma área de pesquisa da Computação que busca construir sistemas que tentam simular a capacidade humana de reconhecer padrões e tomar decisões. “A forma e metodologia de construção de um sistema computacional de inteligência artificial é diferente de um sistema comum ao qual já estamos acostumados (sistema de controle de estoque, cadastro de pacientes etc). Modelos estatísticos são treinados para ficarem aptos a reconhecerem padrões e tomarem decisões”, ressaltou.
Em resumo, IA é uma tecnologia programada para simular a inteligência humana com o objetivo de obter algum nível de autonomia para tomar decisões e resolver problemas. Apesar de ser um conceito relativamente novo, a ideia de uma máquina autônoma nasceu com o matemático e criptógrafo Alan Turing, em 1950. A discussão sobre o uso da IA voltou à tona com o lançamento do Chat-GPT4 - recurso de inteligência artificial que simula a linguagem humana, criado por um laboratório de pesquisas em inteligência artificial dos Estados Unidos. A utilização do ChatGPT para produzir todo tipo de conteúdo trouxe novamente à pauta a discussão sobre os benefícios e eventuais riscos.
O primeiro grande temor em relação à IA diz respeito ao mercado de trabalho. Um estudo recente, realizado pela Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, revelou que operadores de call center e professores universitários de diferentes disciplinas, incluindo idiomas, História, Direito e Religião, estão entre as 20 profissões que correm maior risco de serem substituídas pela IA no futuro.
Cada vez que a tecnologia cria uma nova ferramenta, surge o mesmo temor: é possível substituir, totalmente, o trabalho humano por máquinas? Thiago Moura avalia que a IA ainda não é capaz de capturar questões subjetivas e/ou que envolvam a criatividade humana.
“Os bons profissionais nas suas áreas sempre terão espaço, a questão pesa para aqueles profissionais menos capacitados, onde sim, as ferramentas de IA podem vir a substituí-los”, afirmou.
Para Thaís Gaudêncio, é preciso entender a ‘ameaça’ da IA como um instrumento para reforçar as reais contribuições desses profissionais. “Um professor não é a pessoa que faz um aluno decorar definições, mas àquele que ensina a fazer as perguntas certas, a construir a argumentação e a generalizar e aplicar os conhecimentos adquiridos. Dessa forma, o ChatGPT, por exemplo, serviria como mais uma ferramenta no dia a dia de todos os profissionais e não como um substituto deles”.
Essa visão é compartilhada por Thiago, “Para os bons profissionais, as ferramentas que usam Inteligência Artificial podem ajudar a acelerar a produção de conteúdo. Eu vejo nesse momento a IA podendo substituir as tarefas mais simples. Aquilo que tem intelectualidade e criatividade continuará sendo um desafio para a IA atual”, disse.
Futuro de cooperação distante do mundo distópico do cinema
A cultura pop está cheia de referências sobre um futuro distópico e apocalíptico causado pela IA. Existe, no imaginário popular, a sensação de que a civilização humana poderá, em algum momento, ser ‘escravizada’ por robôs e máquinas.
“É natural dos seres vivos ter medo do desconhecido. Entender sobre como IA funciona e como já faz parte da nossa rotina, talvez ajude a diminuir essa aversão. Toda descoberta pode trazer benefícios e efeitos adversos. É uma escolha humana que caminho seguir ou, ao menos, minimizar esses efeitos”, afirma Thaís.
Para isso, um maior conhecimento sobre o assunto e portanto, a construção de regras e sistemas de controle desses sistemas, tornarão possível seu uso de forma mais ampla e minimizando seus danos para a sociedade. Como achar esse caminho? Thiago Moura aponta alguns meios.
“Mudanças nos conteúdos curriculares das escolas, inserindo conceitos de tecnologia e IA para que crianças e jovens se adaptem a esse novo mundo que está em transformação. Para os adultos, cada vez mais precisaremos nos capacitar e estar sempre atualizados em relação a profissão que abraçamos. Não tem mais como voltarmos atrás em relação as novas ferramentas de IA que estão surgindo”, diz Thiago, reforçando a importância da informação e do conhecimento.
Tecnologia e desinformação
O uso da IA na manipulação de resultados eleitorais é um tema em discussão desde as eleições de 2018. Naquele mesmo ano, o presidente-executivo do Facebook, Mark Zuckerberg, depôs por mais de 5h em uma audiência no Senado dos Estados Unidos para explicar como a rede social reagiu ao vazamento de dados de 87 milhões de pessoas pela consultoria política Cambridge Analytica.
Uma ex-funcionária da Cambridge Analytica afirmou que o Facebook utilizou esses dados para manipular eleições presidenciais em vários países e como esse fato foi determinante nos rumos da democracia desses locais. Em 2020, foi lançado o filme-documentário “O dilema das Redes”, onde especialistas em tecnologia apontaram o impacto das redes sociais na democracia e destrincharam o escândalo da Cambridge Analytica.
“Algumas evidências apontam que houve manipulação das eleições americanas com a vitória do ex-presidente americano Donald Trump e esse é um fenômeno que já está acontecendo. Recentemente, imagens do Papa Francisco e do próprio Donald Trump criadas por IA ganharam as redes sociais e muita gente acreditou que eram reais. Imaginem o que pode acontecer no futuro com a manipulação de imagens, áudios e até vídeos montados por inteligências artificiais?”, questiona Thiago.
Thaís prevê que poderemos fazer parte de um mundo onde as máquinas terão suas formas “certas” de agir e pensar definidas por um grupo seleto de humanos e traz novas perguntas: “Quem disse que é esse o jeito ‘certo’ de pensar para toda a humanidade? Quem está auditando essas experiências e premissas fornecidas para a máquina? Se IA funciona tão bem, talvez estejamos cada vez mais fazendo parte de um padrão. Onde cabem nossas especificidades nesse futuro? Como sairemos dessas bolhas de padrão?”, questiona.
Mundo harmônico
A União Internacional de Telecomunicações – UIT, ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), irá realizar em Genebra, na Suíça, uma Cúpula Global sobre Inteligência Artificial. No encontro, que acontece nos dias 6 e 7 de julho, a UIT quer mostrar como as novas tecnologias e as IAs podem ajudar a alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) na luta contra a crise climática e o apoio à ação humanitária.
Na ocasião, serão apresentados oito robôs humanoides capazes de realizar tarefas ligadas ao combate a incêndios, distribuição de ajuda humanitária, prestação de cuidados à saúde e no manejo da agricultura sustentável.
“Podemos vislumbrar uma sociedade que esteja apta para um mundo de habilidades humanas e criativas. Talvez as máquinas nos ajudem, finalmente, a enxergar como precisamos investir no nosso lado criativo e humano em nossas vidas”, finalizou Thaís Gaudêncio.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 30 de abril de 2023.