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Racismo Ambiental

Luta de um povo ante a urbanização

publicado: 08/04/2024 12h00, última modificação: 08/04/2024 12h02
Em meio ao crescimento urbano, moradores dos quilombos tentam preservar as áreas verdes e suas tradições
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População da comunidade quilombola de Paratibe resiste a práticas típicas da urbanização | Fotos: Ortilo Antônio

por João Pedro Ramalho*

“Nasci quilombo e cresci favela”. O  verso, cantado pela escola de samba Portela no Carnaval deste ano, reflete uma transformação ocorrida em diversas comunidades quilombolas no Brasil. Em João Pessoa, por exemplo, a região de Paratibe vivenciou esse processo, conhecido como favelização. Antes pertencente à área rural da cidade, a comunidade se converteu em periferia, com a expansão urbana para a região sul da capital.

 A incorporação de Paratibe à zona urbana, contudo, veio acompanhada de diversos desafios; entre eles, a manutenção dos recursos naturais, das formas de vida da população e o acesso ao saneamento básico. Esse cenário é decorrente de um fenômeno cada vez mais debatido por intelectuais e autoridades: o racismo ambiental.

De acordo com Suéria Dantas, mestre em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), o racismo ambiental consiste em um conjunto de ações e filosofias que priorizam um ideal de desenvolvimento econômico, mas resultam na devastação do ambiente e na fragilização de setores vulneráveis da população, como pessoas negras, indígenas e quilombolas.

Ela afirma que os efeitos do racismo ambiental no estado são perceptíveis em um contexto de forte especulação imobiliária. “A Paraíba segue a esteira do paradigma nacional, em um cenário permeado pela negação de direitos. Isso se manifesta, sobretudo, nas constantes investidas que comunidades quilombolas e trabalhadores assentados sofrem, através de pressões exercidas por grupos que controlam economicamente a expansão territorial por meio de especulação imobiliária”, explica a mestre em Sociologia.

No entorno de Paratibe, a urbanização se deu principalmente com a construção de loteamentos habitacionais. “Ali era uma região onde se vivia da pesca, da agricultura familiar e da coleta de frutos selvagens. Esse processo de favelização, que acontece dentro de um espaço que deveria ser protegido, fez com que a comunidade perdesse muitas das suas características culturais, os saberes e os fazeres quilombolas”, lamenta Danilo Santos, pesquisador e ativista do movimento negro.

Na Paraíba, o racismo ambiental na população negra pode ser percebido em dados publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), como os que tratam do acesso à rede de esgotamento sanitário. De acordo com o Censo 2022, apesar de representarem a maioria (63,5%) dos residentes no estado, apenas 44,7% dos pretos e pardos possuem destinação adequada de esgoto. Entre as pessoas brancas, essa parcela é de 53,6%.

"Esse processo de favelização, que acontece dentro de um espaço que deveria ser protegido, fez com que a comunidade perdesse muitas das suas características culturais"
- Danilo Santos

Ainda conforme o IBGE, 1.054 quilombolas moram em Paratibe. Eles estão distribuídos em 12 núcleos residenciais, separados dos loteamentos ao redor e enclausurados por muros e portões. Segundo a líder da comunidade negra local, Joseane Santos, as casas têm acesso à água encanada, mas o esgotamento sanitário é feito em fossas secas. Uma consequência recorrente da falta de acesso à rede de esgoto é o alagamento dos quintais após o uso de água, o que costuma resultar em acúmulo de lama e sujeira, expondo as pessoas, principalmente as crianças, a doenças de pele.

Joseane Santos conta que, por causa da urbanização “forçada”, uma parte das famílias deixou de plantar nas terras para construir suas moradias. Outros hábitos que se perderam foram os relacionados à utilização dos recursos naturais pertencentes ao território. No trecho de Mata Atlântica de Paratibe, os moradores costumavam caçar e cortar lenha para cozinhar, mas a imposição da rotina urbana diminuiu essa prática.

Já a pesca de camarões e peixes e a busca de água para consumo, atividades realizadas no Rio Cuiá e no Rio Mangabeira, conhecido pela população como Rio do Padre, foram afetadas negativamente. Os motivos são a poluição e o assoreamento. “As pessoas que pescavam, hoje pescam de forma mais precária ou por diversão, porque o rio não tem mais condições de dar alimento suficiente. Tem até uma senhorinha na comunidade que diz estar muito triste, porque não pode mais pescar, tanto por conta da idade como porque o local não oferece mais segurança de ela adentrar nem tem água limpa”, relata a líder comunitária.

Os efeitos do racismo ambiental também impactam outras esferas da vida comunitária. No trecho de mata que leva ao Rio Mangabeira, por exemplo, há uma trilha frequentemente utilizada pelos moradores. O trajeto é ladeado por cercas de propriedades privadas, mas, para Joseane, é um espaço de ancestralidade. Ela receia que a especulação imobiliária restrinja o acesso à memória dos seus ancestrais. “Essa trilha é um local onde as pessoas cultuavam os seus orixás. Então, essa mata tem uma história, uma vivência, e eu sempre alerto que a gente tem que ter respeito, tem que saber entrar e também saber sair, e não ficar discriminando”, reforça.

Comunidade aguarda demarcação da área

A comunidade de Paratibe foi reconhecida como remanescente de quilombo pela Fundação Palmares em 2006. Após esse reconhecimento, a expectativa dos moradores era pelo Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), documento emitido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que demarca os limites oficiais do território quilombola. A publicação final dessa certidão, entretanto, ainda não aconteceu.

De acordo com a antropóloga do Serviço de Regularização de Comunidades Quilombolas do Incra na Paraíba, Fernanda Lucchesi, o documento já passou por todas as etapas administrativas de sua elaboração, mas a oficialização só poderá ser feita após a conclusão de um processo judicial movido por duas construtoras.

"As pessoas que pescavam, hoje pescam de forma mais precária ou por diversão, porque o rio não tem mais condição de dar alimento suficiente"
- Joseane Santos

A líder comunitária de Paratibe explica que o RTID é fundamental para a preservação da terra. Segundo ela, sem a definição oficial dos limites do quilombo, o local segue à mercê da expansão urbana. Mais do que isso, Joseane teme pelo desaparecimento do quilombo.

“A gente está tentando resgatar o nosso território, pra ver se ainda consegue manter a existência da comunidade, da população em si, constatando que é uma necessidade muito grande deles de permanecer aqui”, declara.

Trilha que representa área de hábitos ancestrais está ladeada pela propriedade privada

A luta de Joseane pela manutenção de seu povo ecoa, assim, outro samba-enredo clássico, cantado pela Estação Primeira de Mangueira em 1988. Nos versos, a escola de samba lembrava: “Moço, não se esqueça que o negro também construiu as riquezas do nosso Brasil”.

Nesse sentido, a líder comunitária de Paratibe clama por um olhar mais atento das autoridades aos quilombolas. “Alguns representantes dos poderes públicos não nos veem como uma comunidade pela qual eles deveriam ter uma atenção mais específica, mas como um monte de negros que está nas terras onde já deveriam ter construído. Eles acham que não tem por que a gente ter terras e que a gente não faz nada. Mas a questão é: a gente vai fazer o que, se não tem mais terras para plantar?”, pergunta Joseane.

MPPB

A resposta para o questionamento de Joseane pode passar por instâncias como o Ministério Público da Paraíba (MPPB). De acordo com a promotora de Justiça do MPPB e coordenadora do Núcleo de Gênero, Diversidade e Igualdade Racial (Gedir), Liana Carvalho, o Gedir tem acompanhado demandas relacionadas ao racismo ambiental.

“Há atuações diretas em pautas ligadas às comunidades quilombolas, como a construção de estradas, seu acesso a serviços públicos e o apoio ao projeto ‘Quilombos motorizados’, em que já foi conseguida a doação de um veículo à Coordenação Estadual das Comunidades Negras Quilombolas da Paraíba (CECNEQ)”, explica.

Liana Carvalho reforça que a população pode acionar o MPPB caso haja a necessidade de uma intervenção da Justiça para o combate ao racismo ambiental. Segundo ela, é possível fazer denúncias em qualquer promotoria do estado, tanto presencialmente como pelos canais digitais disponíveis na página Fale Conosco do site MPPB.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 07 de abril de 2024.