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violência de gênero

Mulheres “na mira” do machismo

publicado: 18/09/2023 13h23, última modificação: 18/09/2023 13h23
Ciúme, sentimento de posse e comentários ofensivos são alertas para que vítimas percebam o ciclo da violência
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Antes da violência física, mulheres são submetidas a situações contínuas de ciúmes - Fotos: Fabiana Veloso

por Taty Valéria*

No último domingo, foram divulgadas imagens do médico João Paulo Casado agredindo a companheira. Em duas ocasiões diferentes, que aconteceram em 2022, o agressor puxa o cabelo e agride a vítima com socos. Após a repercussão, o médico foi exonerado das funções em que exercia em hospitais públicos, será investigado pelo Conselho Regional de Medicina, e o Corpo de Bombeiros abriu procedimento apuratório para investigar a conduta do médico, que é militar da corporação desde 2005. O inquérito que apura a violência doméstica segue em andamento.

Em outro caso, que ocorreu em abril de 2022, Elinete da Silva Sousa Ângelo, vereadora do município de Prata, no Cariri do estado, assistia um jogo de futebol com a família quando foi assassinada pelo ex-marido, Manoel de Ângelo, que fugiu após o crime. Cerca de 20 dias depois, o acusado se entregou, foi preso e hoje aguarda o julgamento pelo crime de feminicídio. De acordo com informações da Polícia Civil da Paraíba à época do crime, o casal passava pelo processo de divórcio e Manoel de Ângelo não aceitava a separação.

Assim como Elinete, outras 24 mulheres paraibanas foram vítimas de feminícidio em 2022, de acordo com dados da Secretaria de Estado de Segurança e Defesa Social. Um estudo realizado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo mostra que a principal motivação para o crime é o inconformismo com a separação (45%), seguida de ciúmes, posse e machismo (30%), sendo esta apontada como a última fase  do ciclo de violência.

O sentimento de posse que ex-companheiros, sejam maridos ou namorados das vítimas apresentam, possui raízes profundas que estão entrelaçadas com o próprio conceito do machismo, que enxerga a mulher como uma propriedade.  De acordo com a publicação “Diretrizes para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres”, da ONU Mulheres, as principais causas de violência e assassinato de mulheres são o sentimento de posse, o controle sobre o corpo e autonomia da mulher, seu tratamento como objeto sexual e a manifestação de desprezo e ódio pela mulher, a limitação da emancipação profissional, econômica, social e intelectual da mulher.

Psicóloga do Programa Integrado Patrulha Maria da Penha em Campina Grande, Glória Tamires Maciel, concorda que o sentimento de posse possui raízes no machismo e, consequentemente, na desigualdade de gênero que é gerada por ele. “Isto faz com que os homens tenham uma compreensão de que são superiores e que as mulheres devem ser submissas às suas vontades e pensamentos. Dessa forma, as mulheres passam a ocupar o lugar de mero objeto na relação. Há uma visível relação de poder, na qual o homem é o dominador”, diz a especialista.

Sobre as relações de poder, a delegada Paula Monalisa, sub-coordenadora das Delegacias Especiais da Mulher na Paraíba, e que coordena a investigação contra o médico João Paulo Casado, afirma que a dependência financeira e emocional ainda são os grandes empecilhos para que uma mulher consiga sair de um relacionamento abusivo, sendo a questão emocional a mais difícil de se lidar. “A dependência financeira é real, mas é controlável. A mulher pode fazer um curso, voltar a estudar, fazer bolo, voltar a morar com os pais... em resumo, ela pode ‘dar um jeito’. Mas a dependência emocional é mais grave porque só ‘depende’ da mulher, e sabemos como isso é complicado, não é tão simples.”, afirma a delegada.

Ciclo de violência começa com críticas para rebaixar parceira

Glória Tamires Maciel afirma que é importante estar atenta a alguns sinais e saber que estes se iniciam, na maioria das vezes, de forma sutil, o que dificulta a identificação. “Então, é importante estar alerta à presença de críticas constantes que têm como objetivo desmerecer ou minar os gostos e vontades da mulher; comportamento de controle a respeito de suas roupas, amizades, trabalho, família; a solicitação de atenção constante e com isso ir gerando o afastamento da mulher de seus familiares e amigos, ciúmes excessivo, comentários ofensivos; a necessidade de solicitar provas de amor, chantagens emocionais, descontroles seguidos de pedidos de desculpas, bem como culpar a mulher por perder o controle”.

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A mulher que sofre violência doméstica pode procurar atendimento especializado disponível

Para a delegada Paula Monalisa, a mulher precisa se enxergar em um ciclo de violência. “O que geralmente ocorre é que os homens começam com comportamentos de ciúmes exagerados, questionam as roupas, comportamentos e as amizades. Essas atitudes são confundidas com atenção e cuidado. Mas, isso é controle, violência e as mulheres não se enxergam como vítimas”.

“A mulher naturaliza a agressão verbal e eu vejo isso rotineiramente quando chega na delegacia e acha que foi a primeira vez que foi agredida, perguntamos sobre agressão verbal e ela diz que isso tem desde sempre. Então, é normal ser xingada, ser chamada por termos pejorativos? Isso é naturalizado, mas é sim uma violência e ela só consegue enxergar essa violência quando é atípica. Tem que haver respeito entre o casal”, finaliza a delegada.

Outra vida é possível

A psicóloga Glória Tamires aponta que “os padrões machistas, por muito tempo, legitimaram a violência contra a mulher e, por isso, a urgência de desatualizá-los, e de introduzir ou fortalecer a igualdade de gênero”. A delegada Paula Monalisa reforça a importância das denúncias (pelo 180 ou 190), que podem ser anônimas. “A mulher que quer se libertar pode procurar a delegacia, a Rede de Apoio e Proteção, ou a ajuda de um psicólogo”.

Larissa Bonifácio de Melo, assistente social do Programa Integrado Patrulha Maria da Penha - Núcleo Campina Grande, elenca os traumas e danos físicos e psicológicos das mulheres que são vítimas de violência de gênero. “Esses traumas podem levar a doenças cardiovasculares, transtornos de ansiedade, depressão, estresse, impacto na saúde reprodutiva, incapacidades, dificuldade de permanecer em outros relacionamentos, julgamentos da sociedade, falta de apoio familiar, diminuição da inserção ou permanência no mercado de trabalho, por isso, é necessário que os órgãos deem suporte para essas mulheres vítimas da violência”.

A assistente social indica que esse suporte pode se fazer presente nos mais variados serviços a exemplo dos Centros de Referências da Mulher, delegacias especializadas, Programa Integrado Patrulha Maria da Penha, Casas Abrigo, Centros de Referências Especializados de Assistência Social-Creas, redes de serviços de saúde como Caps, Unidade Básica de Saúde, policlínicas. Na Paraíba, o atendimento às vítimas de violência doméstica é realizado nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher ou pelo Disque 180. Para casos de emergência, a Polícia Militar deverá ser acionada pelo número 190. O Boletim de Ocorrência também pode ser feito de forma virtual.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 17 de setembro de 2023.