O acesso a remédios à base de maconha, no Brasil, ocorre de três formas principais: em farmácias, via importação ou por meio de associações de pacientes. E duas dessas modalidades têm se sobressaído na Paraíba. Segundo o Anuário da Cannabis Medicinal 2024, divulgado em novembro pela Kaya Mind, empresa especializada no tema, o estado registrou o maior crescimento percentual na solicitação de importações dos medicamentos entre as unidades federativas do Brasil.
O cenário considera a localização dos pacientes (aumento de 114%, de julho de 2023 até julho de 2024) e a origem dos médicos prescritores (alta de 175%, entre outubro de 2019 e julho deste ano). Além disso, a Paraíba sedia a maior associação de pacientes do Brasil — a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace) —, que possui cerca de 40 mil membros ativos em todo o país, de acordo com seu diretor-executivo e fundador, Cassiano Gomes.
Para a CEO da Kaya Mind, Maria Eugenia Riscala, uma possível explicação para o aumento expressivo das importações é a diversificação no mercado paraibano, tradicionalmente dominado pela Abrace. “Eu sinto que, talvez, com a ampliação dos tratamentos à base da cannabis, muitas pessoas não se sentiram contempladas dentro da proposta da Abrace, por qualquer motivo. Com isso, a Paraíba, que tinha uma base de importações um pouco mais baixa, por conta da presença da associação, mostrou um crescimento percentual alto, em comparação a outros estados que não tinham uma instituição tão grande”, comenta.
Brasil
O Anuário da Cannabis Medicinal 2024 constatou também que a quantidade de pessoas que utilizam os remédios à base de canabinoides aumentou no Brasil. Neste ano, há 672 mil pacientes cadastrados para o uso desses medicamentos; número 56% maior se comparado ao registrado em 2023, quando 430 mil pessoas eram consideradas usuárias dos produtos. O crescimento no total de pacientes acompanha o avanço nas pesquisas, que apontam para um conjunto de diversas condições de saúde passíveis de tratamento. Entre elas, conforme detalha Marcos, estão as dores crônicas, demências — como Alzheimer e Parkinson —, ansiedade, depressão, insônia, asma, enxaqueca, neuralgia do trigêmeo, esclerose múltipla, endometriose, psoríase e efeitos adversos do tratamento do câncer, a exemplo da quimioterapia.
O médico de família e comunidade explica, ainda, como os componentes dos remédios derivados da maconha, especialmente o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC), atuam no organismo. “Os medicamentos agem por meio do sistema endocanabinoide, que todos os seres humanos e mamíferos possuem. Esse sistema é conectado, como se fossem chave e fechadura, com os fitocanabinoides, entre eles o CBD e o THC. Cada sistema endocanabinoide é único em cada indivíduo e, por isso, todo tratamento deve ser sempre individualizado”, completa Marcos.
Produção
Na Abrace, os medicamentos são fabricados e distribuídos em três formas: pomadas, sprays e óleos, sendo esses os de maior demanda. Segundo Cassiano Gomes, o cultivo da planta, cuja autorização foi obtida em 2017, é realizado, atualmente, em Campina Grande. Já a transformação da matéria-prima extraída nos remédios é feita na capital paraibana, processo que tem se tornado mais eficiente com o tempo. “A Abrace tem os óleos de 10 ml e de 30 ml e também os óleos mais concentrados de 100 mg e de 200 mg de CBD. Isso foi um avanço gigantesco, já que, como nosso cultivo é sustentável, a gente tem condição de fazer produtos mais concentrados. E, hoje, nossos produtos são iguais ou melhores do que os importados”, afirma o fundador da associação.
Estado lidera número proporcional de prescrições de receitas no NE
O ponto de partida para o acesso aos produtos à base de cannabis é a prescrição dos médicos. De acordo com o anuário da Kaya Mind, a Paraíba lidera, no Nordeste, o índice de receitas dos medicamentos, quando considerada a localização dos prescritores: são 14,2 a cada 10 mil habitantes. O estudo considera os profissionais que estão registrados no Conselho Regional de Medicina da Paraíba (CRM-PB) — confira o ranking no quadro.
Um profissional que atua no estado e incluiu os remédios em suas prescrições é o médico de família e comunidade Marcos Bosquiero. Ele conta que, durante a formação acadêmica, os fármacos produzidos com canabinoides não foram apresentados como uma possibilidade de tratamento. A adoção em sua clínica deveu-se a estudos particulares e a uma pós-graduação na área.
O cenário que levou Marcos a buscar informações sobre os medicamentos em meios alternativos evidencia a existência de objeções, entre seus pares, à indicação desses produtos. A situação, porém, tem se modificado. “Sempre houve resistência em relação à prescrição, inclusive da própria categoria médica, mas muitos profissionais já estão mais abertos. O CRM vem tentando, de alguma forma, dificultar esse acesso, mas, hoje, qualquer profissional pode prescrever, desde que se sinta seguro e com possibilidade para dar um acompanhamento”, esclarece.
Nesse sentido, a ampliação do conhecimento sobre os produtos à base de maconha, por parte dos profissionais de saúde, é referida pelo médico e por Maria Eugenia como uma etapa fundamental para combater o preconceito e facilitar o acesso aos medicamentos.
Outro ponto importante para a ampliação do acesso diz respeito aos avanços na legislação. Cassiano ressalta, por exemplo, a autorização recente para importação de sementes e cultivo de cannabis, desde que para fins medicinais, farmacêuticos e industriais. A decisão foi tomada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em novembro e inclui um prazo de seis meses para que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regulamente a questão. Para o diretor-executivo da Abrace, porém, ainda há um caminho a ser percorrido. “O que falta nesse país é uma regulamentação definitiva, democrática, que observe toda a parte cultural do Brasil, que promova a equidade e a igualdade e, principalmente, que gere empregos aqui”, defende.
Em João Pessoa, uma lei promulgada, em março, pela Câmara de Vereadores garante a oferta gratuita dos remédios a usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Trata-se da Lei nº 2.005, segundo a qual o Poder Público da cidade deve fornecer os medicamentos, desde que esses tenham sido prescritos por um médico, junto a um laudo com as explicações para o tratamento. O paciente também precisa estar inscrito no serviço médico público prescritor da cannabis, sendo acompanhado ambulatorialmente, pelo menos, uma vez a cada seis meses.
Em nove anos, associação já atendeu 53 mil pacientes
Fundada em 2015, a Abrace se destaca tanto por seu pioneirismo como pela capilaridade em nível nacional. Desde a sua criação, a associação já atendeu 53 mil pessoas. Para o diretor-executivo Cassiano Gomes, parte desse sucesso está atrelada ao espaço conquistado na imprensa do país, o que atraiu novos associados.
As pessoas que possuem recomendação médica e estão interessadas em adquirir os remédios devem realizar um cadastro, o qual inclui o pagamento de uma anuidade, importante para manter a estrutura de produção. O diretor-executivo da associação salienta, porém, que 20% dos pacientes recebem algum tipo de desconto, com taxas variando de 20% a 100%, o que correspondeu, neste ano, à oferta de 13.500 produtos isentos.
A atuação da Abrace, contudo, não se limita à produção e à oferta dos remédios, abrange o acompanhamento dos profissionais responsáveis pelas prescrições. “A gente criou a categoria de médico associado, que oferece acolhimento e orientação, além de ele estar isento das taxas associativas. E a gente buscou olhar o médico não como o prescritor, mas como o paciente, o que nos leva a tratar esses profissionais, porque muitos deles estão doentes. Isso foi maravilhoso, já que trouxe uma chuva de médicos para cá. No mês de janeiro, por exemplo, mais de 150 deles se cadastraram”, detalha Cassiano.
Para a CEO da Kaya Mind, Maria Eugenia Riscala, o acompanhamento de médicos e pacientes, com a abertura de canais para tirar dúvidas e discutir protocolos clínicos, consiste no principal papel exercido por associações como a Abrace — o que as diferencia de outros atores do mercado da cannabis medicinal. “Fora essa questão da proximidade, a associação foi a primeira a entender a dor da mãe, e esse é um mercado que começou com as mães. Então, eu não sei se estaríamos onde estamos sem as associações; e, mais importante, eu não acho que a gente possa mover adiante sem considerá-las. Porque muita gente acha que é suficiente ter o remédio na farmácia, mas a farmácia tem pouca opção e a farmacêutica não está nem aí para o médico ou para o paciente e nem liga se o cultivo é nacional ou feito lá fora. Quem está preocupado com isso são as associações”, declara.
Saiba mais
Confira o ranking nordestino das prescrições de cannabis, por cada 10 mil habitantes, de acordo com a localização dos prescritores:
Paraíba – 14,2
Bahia – 13,3
Rio Grande do Norte – 5,9
Pernambuco – 5,2
Sergipe – 5,2
Ceará – 4,3
Alagoas – 2,1
Piauí – 2,1
Maranhão – 1,5
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 15 de dezembro de 2024.