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“privatização das praias”

PEC pode atingir 12,2 mil imóveis

publicado: 07/06/2024 08h44, última modificação: 07/06/2024 08h44
Caso seja aprovada, a medida pode expandir ocupação desordenada do litoral e agravar as mudanças climáticas
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A vegetação costeira abriga ecossistemas inteiros, com ampla diversidade de espécies | Fotos: Evandro Pereira
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Sem o sistema de ancoragem proporcionado pelas plantas, o mar pode destruir casas | Fotos: Evandro Pereira
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por João Pedro Ramalho*

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) no 3, de 2022, que modifica a propriedade das áreas definidas como terrenos de marinha, voltou a ser debatida pelo Senado, na última semana. O projeto prevê a transferência da posse das terras em questão, hoje exclusivas da União, para estados e municípios — se já forem utilizadas pelo serviço público — e para ocupantes privados inscritos no órgão de gestão do patrimônio da União ou que estejam no local há pelo menos cinco anos.

"O projeto pode afetar a biodiversidade do mar e da costa, com aumento da emissão de gás na atmosfera"
- Mariana Guenther

De acordo com o portal de Transparência Ativa da Secretaria do Patrimônio da União (SPU), há, na Paraíba, 12.280 imóveis em terrenos de marinha, em uma área de 143 km². Desses imóveis, 12.239 (99,7%) estão ocupados por terceiros, enquanto 41 (0,3%) são administrados por órgãos públicos. Ao todo, essas propriedades somam um valor de avaliação de R$ 1,11 bilhão.

Os terrenos de marinha são definidos pelo Decreto-Lei no 9.760, de 1946, como as áreas situadas a 33 m da Linha do Preamar Média (LPM). Esse limite mede o nível máximo das marés, tendo como base os registros de 1831. São consideradas, nessa definição, as terras situadas na costa marítima, nas margens de rios e lagoas e nas ilhas, onde houver influência das marés. Caso a PEC seja aprovada, esses terrenos seriam cedidos gratuitamente, no caso de estados e municípios, ou mediante pagamento, para ocupantes privados. Além disso, as propriedades particulares não estariam mais sujeitas ao regime de aforamento, com a extinção do pagamento de foro, taxa de ocupação e laudêmio.

Nas redes sociais, a proposta passou a ser conhecida como a PEC da “privatização das praias”. Em entrevista a portais de imprensa, o relator do projeto no Senado, Flávio Bolsonaro (PL-RJ), refutou que essa seja a intenção da PEC, e afirmou que pretende acrescentar uma emenda à proposta, deixando explícito que as praias permaneceriam abertas ao público.

Ocupação urbana

A Paraíba tem uma faixa litorânea de 128 km de extensão, de acordo com a Superintendência de Administração do Meio Ambiente (Sudema). Para o geógrafo Saulo Vital, professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), a aprovação da lei deve contribuir para o desordenamento da ocupação urbana no litoral e aumentar a erosão costeira. Ele também explica que o projeto ameaça a sobrevivências dos próprios terrenos, hoje protegidos pela restinga.

"Esse projeto ameaça a sobrevivência dos próprios terrenos, que hoje são protegidos pela restinga"
- Saulo Vital

Segundo o geógrafo, essa vegetação tem, entre outras funções, o objetivo de proteger o continente do avanço de marés mais altas e de ressacas. “Sem a restinga, a força das ondas consegue chegar mais adiante. Ao ocupar essa região com casas, surgem os problemas causados pelo avanço do mar. Consequentemente, vêm as obras de contenção, para evitar que as moradias sejam destruídas, e essas obras acabam transferindo o problema para o norte, gerando novas demandas”, explica.

Ainda de acordo com ele, a Paraíba já enfrenta dilemas relacionados à expansão urbana no litoral, em locais como Baía da Traição, Lucena, Cabedelo e Conde. Na capital, a praia do Bessa também sofre com os efeitos da urbanização e está mais exposta à ação das marés. “Essa praia já tem muita invasão, praticamente não dispõe mais do que a gente chama de pós-praia, que é aquela linha onde fica a restinga”, diz.

Por outro lado, o professor acrescenta que municípios como Marcação, Mataraca e Rio Tinto, a vegetação encontra-se mais preservada. “Isso acontece porque, nesses lugares, a ocupação costeira é menor”, esclarece.

Mudanças climáticas

Outra possível consequência da expansão urbana no litoral, caso a PEC no 3/2022 passe pelo Senado, é o agravo das mudanças climáticas, como explica a bióloga Mariana Guenther, doutora em Oceanografia. Isso porque o desmatamento e o aterramento das praias, juntamente com a emissão de esgotos domésticos não tratados, podem afetar a biodiversidade, tanto do mar quanto da costa. “Considerando que a vegetação costeira e as algas marinhas são captadoras do gás carbônico atmosférico, a retirada dessa vegetação e os impactos sobre as algas podem contribuir para o aumento das concentrações do gás na atmosfera e, assim, afetar o clima”, defende Mariana.

As comunidades tradicionais litorâneas também podem sofrer o impacto da redução do acesso às praias. “A aprovação da PEC traria um grande impacto socioeconômico, prejudicando diretamente as comunidades pesqueiras, que não teriam mais acesso ao mar, seu meio de sobrevivência, e também os comerciantes das praias. Além de afetar o turismo, uma vez que o acesso às praias seria restrito aos moradores ou aos clientes dos hotéis que seriam construídos ali”, alerta a bióloga.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 07 de junho de 2024.