“Como falar com meus patrão. Ele digita pra mim e eu não sei digitar. Só sei mandar áudio. Também não sei fazer Pix. Eu não tenho muito estudo, não consegui aprender”. Aos 46 anos, Alexandre Bernardo nunca teve a chance de ser alfabetizado. Pedreiro e pai de seis filhos, ele é um dos 1.200 estudantes que decidiram enfrentar o tempo e as marcas de uma história coletiva de negação de direitos, entrando para uma das 76 turmas da Jornada de Alfabetização.
A Paraíba ainda registra 13,2% de analfabetismo entre pessoas com 15 anos ou mais, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e o projeto desenvolvido pelo Coletivo Mãos Solidárias tenta justamente diminuir esse índice, considerado alto.
As aulas, ministradas para jovens, adultos e idosos, começaram em 18 de agosto e acontecem quatro vezes por semana. Com duas horas diárias de duração, elas vão se estender até dezembro. Espalhados por 33 bairros tanto da capital quanto da Região Metropolitana, os educadores estão nas principais comunidades das periferias urbanas de João Pessoa, Santa Rita, Bayeux e Cabedelo.
O projeto ganha capilaridade e atinge o público-alvo por uma rede preexistente de organizações sociais e políticas já estabelecidas nessas localidades. As aulas acontecem em ocupações, paróquias, terreiros, associações de moradores, garagens de casas e em escolas que se abriram para receber as turmas.
A iniciativa procura se diferenciar de outras com o mesmo objetivo. A diferença fundamental está também no método utilizado com os alunos, como explica Mirna Lomanto, coordenadora estadual da Jornada de Alfabetização. “Não é apenas ensinar a ler e escrever, mas construir, também, uma leitura de mundo com base na realidade de cada educando, incentivando criticidade, motivação e trocas de saberes entre alfabetizadores e alunos. Da mesma forma como eles vão para a sala para aprender um pouco sobre esse sistema gráfico de leitura e números, eles vão para contribuir no processo educativo uns dos outros e para contribuir na construção pedagógica com o alfabetizador”.
Essa leitura de mundo, à qual Mirna se refere, é crucial para alunos como Alexandre Bernardo, cuja realidade é difícil. O aluno vai direto do trabalho, nos canteiros de obra, para as aulas de alfabetização. “Eu saio [para o ofício] de sete, sete e meia, né? Aí chego mais ou menos às cinco e meia da tarde. Quando dá umas seis e vinte, já me preparo para ir para a aula, estudar, entendeu? E fico na aula até as nove da noite”. Essa é a rotina de Alexandre para conseguir se alfabetizar.
Os encontros acontecem na ocupação Terra Livre, instalada no antigo prédio da TV O Norte, no Centro de João Pessoa.
Evasão é combatida desde a preparação daqueles que lecionam
Com tantos desafios a enfrentar, um dos obstáculos para garantir a permanência dos alunos no projeto é o abandono das aulas, o que pode significar a última chance perdida de alfabetização dessa pessoa.
A Educação de Jovens e Adultos (EJA), por exemplo, enfrenta hoje um cenário de forte evasão escolar. Dados do Censo Escolar 2022 apontam que o número de matrículas nessa modalidade caiu de 3,5 milhões em 2018 para 2,7 milhões em 2022, o que representa uma redução de mais de 21%. Essa queda revela o desafio de garantir o acesso e, principalmente, a permanência de jovens e adultos em sala de aula.
Mirna Lomanto, no entanto, afirma que a evasão entre os alunos que frequentam as aulas da Jornada de Alfabetização é muito menor, uma vez que não é vista apenas como responsabilidade do educando, mas também do alfabetizador. Segundo ela, é desenvolvido um trabalho de motivação junto aos alfabetizadores e mantida a percepção de sempre buscar os alunos, procurando compreender os motivos que levam à ausência nas aulas.
Método e amplitude
A Jornada de Alfabetização está presente nos nove estados nordestinos, além de Minas Gerais e São Paulo. Financiado pelo Ministério da Educação e operacionalizado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o projeto oferece bolsas-auxílio para coordenadores e alfabetizadores.
O processo pedagógico segue o modelo cubano chamado Yo, sí puedo (Sim, eu posso). Criado, em 2001, pela pedagoga cubana Leonela Inés Relys Díaz em parceria com o Instituto Pedagógico Latino-Americano e Caribenho, o método já foi aplicado em mais de 30 países.
Ele funciona utilizando números associados a letras e palavras para facilitar o processo de aprendizagem inicial da leitura e da escrita. O processo combina materiais audiovisuais (como vídeos e cartilhas) com aulas presenciais ministradas por alfabetizadores. Segundo a Unesco e organismos internacionais, o programa ajudou milhões de pessoas a se alfabetizar, sendo reconhecido por sua eficiência em contextos de vulnerabilidade social.
A formação dos educandos para a Jornada de Alfabetização aconteceu em Lagoa Seca, no Centro de Formação Elizabeth e João Pedro Teixeira, com um processo de diálogo no campo da Educação Popular. Os facilitadores, muitas vezes moradores das próprias comunidades, foram capacitados para trabalhar com essa metodologia.
A mobilização para despertar o interesse de tanta gente, por sua vez, foi feita porta a porta. “Os coordenadores de turma articularam alfabetizadores dentro dos territórios, pessoas das próprias regiões”, acrescenta a coordenadora.
Jornada prevê formação de cidadãos politizados e críticos
A proposta da Jornada de Alfabetização não envolve política partidária, mas promove debates sobre política social, políticas públicas e direitos sociais, incentivando os educandos a desenvolver consciência crítica e a se reconhecer como sujeitos ativos em sua comunidade.
Segundo a coordenadora do projeto na Paraíba, isso integra a rotina de estudos a um processo de formação política. “Isso vai dando esperança, porque você vai vendo as pessoas se motivando a estudar, a participar de outros coletivos e a se engajar em outros processos de luta. A gente tem discutido muito com os alfabetizadores o projeto do plebiscito popular para a taxação dos super-ricos, a isenção do Imposto de Renda. Então, começamos a articular outras conversas, outras discussões políticas, e isso possibilita uma perspectiva de futuro, de construção conjunta do futuro”, defende Mirna Lomanto.
Essa perspectiva de futuro não é apenas teórica. Foi assim também para Alexandre Bernardo. Tendo se mudado para João Pessoa em 2000, ele não conseguiu romper completamente com o analfabetismo em sua família. Dos seis filhos que teve, em dois casamentos, apenas a mais velha conseguiu ser alfabetizada.
“Foi a melhor coisa que aconteceu, depois de 46 anos ter a oportunidade de voltar atrás, né? No tempo que a gente viveu. E eu só agradeço ao Mãos Solidárias. Hoje a tecnologia nas redes sociais se torna fácil, mas pra mim é difícil, tá entendendo? Agora, depois de 46 anos, estou tendo essa chance pra também ajudar minha mãe e meus irmãos”.
Vida digital
Se antes o maior constrangimento de um adulto não alfabetizado era não conseguir ler um documento ou uma placa de ônibus, a exclusão contemporânea aprofunda os abismos e acontece na palma da mão. A tela de um smartphone torna-se um labirinto indecifrável para realizar um Pix, pagar uma conta ou acessar um simples wi-fi. A sociedade acelerou para o digital, mas ainda deixa para trás milhões de brasileiros para quem a tecnologia, em vez de facilitar, escancara uma exclusão profunda.
“Essas pessoas não estão aprendendo para mudar a carreira delas, porque a maioria já tem suas próprias percepções e concepções de vida. Mas a alfabetização pode ser uma abertura de outros caminhos, uma ferramenta para ajudar a entender a realidade. É a concepção de que o educando tem muito a oferecer e muito a ensinar nesse processo”, conclui a coordenadora.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 14 de setembro de 2025.