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População negra

Séculos de luta por direitos básicos

publicado: 13/11/2023 14h05, última modificação: 13/11/2023 14h05
No mês em que se comemora o Dia Nacional da Consciência Negra, especialista destaca descaso com o segmento
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A falta de reconhecimento aos grandes pensadores negros desconstrói a pretensa ideia de democracia racial - Foto: Freepik

por André Resende*

A “carne mais barata do mercado”, as “mentes mais apagadas da História”. A trajetória da população negra no Brasil revela algum nível de ausência no imaginário da intelectualidade nacional. A falta de reconhecimento aos grandes pensadores negros, aliás, desconstrói a pretensa ideia de democracia racial, tema que volta à discussão neste mês de novembro, quando é celebrado o Dia Nacional da Consciência Negra (20).

O apagamento da contribuição negra para o pensamento crítico nacional é defendido pelo professor João Edson Rufino, doutor em Literatura pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi) do Instituto Federal da Paraíba (IFPB). Ele comenta que a historiografia brasileira tida como oficial, portanto embranquecida, relegou a ideia de intelectualidade ao branco.

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Professor João Rufino, coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas(Neabi) do Instituto Federal da Paraíba (IFPB)

“O problema é que essa historiografia que se convencionou é excludente. A metodologia dela relegou o espaço do intelectual ao branco, o espaço de selvageria aos indígenas e ao negro somente o espaço do corpo. Nunca foi pensado o negro como intelectual. No Brasil, reconhecem como o pagodeiro, como o sambista, o atleta, não como uma figura intelectual”, comentou João Rufino.

Assim como a liberdade, oficializada somente em 1888, tornando o Brasil o último país a acabar com a escravidão nas Américas, a educação chegou tardia a essa população brasileira. O Estado não apenas desconsiderou um planejamento para ingresso sistemático de ex-cativos ao aprendizado pedagógico, uma inserção natural para reduzir em longo prazo o abismo social, como alguns anos antes da abolição, em 1837, impediu a presença de negros em escolas por meio de lei.

O acesso dos negros à educação, no entanto, aconteceu à revelia, numa flagrante demonstração de resistência. Alforriados ensinavam outros negros que iam sendo libertos de cativeiros, custeando o ensino com as mensalidades de estudantes brancos. Personalidades negras como os professores Antônio Cesarino e Pretextato dos Passos e Silva foram fundamentais nesta luta, um trabalho que pavimentou o caminho para o surgimento dos primeiros intelectuais brasileiros pretos e pardos.

Produção de conhecimento antecedeu abolição da escravatura

Aliás, a construção da intelectualidade negra no país antecede a abolição, como relembrou o professor João Edson Rufino. “Luís Gama, por exemplo, já produzia conhecimento 30 anos antes da abolição com a publicação de Trovas Burlescas na Bahia. No Maranhão, também antes da abolição, que foi algo completamente geopolítico para agradar a Inglaterra, nós tínhamos a professora Maria Firmina dos Reis, publicando seu romance Úrsula”, destacou João Rufino.

Racismo estrutural
O racismo estrutural do Brasil, no que fora conceituado por Silvio Almeida, atual ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, sistematicamente impediu o devido reconhecimento de homens e mulheres negras que contribuíram diretamente para a construção do conhecimento no país em sua plenitude, em toda sua diversidade. A discriminação, fustigada por séculos, invisibilizou e embranqueceu negros intelectuais.

Machado de Assis, por exemplo, consensualmente um dos maiores escritores da literatura nacional, em nossa historiografia dita oficial, por muitas vezes teve sua negritude contemporizada, suas origens negras quase escondidas. Milton Santos, outro intelectual, considerado um dos maiores pensadores brasileiros do século 20, é muito pouco cultuado ou devidamente valorizado em toda sua contribuição para pensarmos o nosso país.

O pouco caso com a contribuição negra para o movimento intelectual brasileiro, se é que é possível considerar assim, é um reflexo da assimetria do tratamento racial do país. “A consequência de práticas de discriminação direta e indireta ao longo do tempo leva à estratificação social, um fenômeno intergeracional, em que o percurso de vida de todos os membros de um grupo social – o que inclui as chances de ascensão social, de reconhecimento e de sustento material – é afetado”, designou Silvio Almeida em seu livro “O que é racismo estrutural?”, publicado em 2019.

“Tivemos dois holocaustos, mas que foram normalizados”

O professor João Edson Rufino reforça a ideia de racismo estrutural contextualizando que, além de perceptível a partir da ação do Estado, o racismo se espalha por outras estruturas da sociedade, como por exemplo, a mídia. Em sua análise, ele denuncia a existência de dois genocídios cometidos no país, dois apagamentos étnicos provenientes da ação de homem branco.

“No Brasil, tivemos o genocídio indígena e o negro, dois holocaustos brasileiros, mas que foram normalizados na nossa história. No passado, muitos negros foram mortos por serem negros. No presente, muitos deles seguem sendo assassinados, inclusive pelo próprio Estado, somente por serem negros”, pontuou. Ele acrescentou que o filósofo camaronês, Achille Mbembe, usa um termo para essa violência sistemática - a necropolítica. Um conceito que nada mais é do que a ideia de que é normal a morte violenta de uma parcela da sociedade, incluindo aí a de pretos e pardos.

Muniz Sodré, jornalista e sociólogo, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, associa o racismo à brasileira às ideias eugenistas vindas da Europa. Em seu último livro, “O Fascismo de Cor”, publicado neste ano, Sodré propõe uma conceituação diferente para o que é chamado racismo estrutural: forma social escravista. Em entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo em março deste ano, Muniz Sodré acrescentou que a dificuldade de combater o racismo no país se dá pelo fato de ser institucional e intersubjetivo, difícil de “pegar”, ainda mais quando o mecanismo da negação existe como um instrumento racista.

Combate ao racismo
Ações afirmativas provenientes do próprio Estado, seja por meio de políticas públicas ou leis, têm colaborado para o combate do racismo brasileiro. Iniciativas que foram conquistas do movimento negro brasileiro, inclusive. A política de cotas, por exemplo, é uma das formas de reparação à violência imposta por anos aos pretos e pardos no país, que seguem lutando por condições paritárias de ocupar os mesmos espaços dos brancos na sociedade.

João Edson Rufino, coordenador do Neabi do IFPB, reforçou que os reflexos que ainda são sentidos pela população negra no cotidiano são consequência de uma estratificação intencional que se prolonga por séculos. Um problema que não vai ser resolvido de forma tão simples, mas somente após mais outros séculos de mudança de compreensão da questão racial do Brasil.

“São séculos de uma violência contra negros que não se destrói de um dia para o outro. Qualquer mudança por menor que seja não deixa de ser mudança. Há cerca de 20 anos, por exemplo, o debate estava menos evoluído que hoje, quando já é possível perceber, principalmente pelas redes sociais e na mídia, que o tema já ocupa todos os ambientes, não somente a academia. A mudança só acontecerá quando todos, em todos os seus setores, colaborarem também para desconstruir esse racismo histórico e monstruoso, e isso é um trabalho de séculos”, concluiu.

O racismo à brasileira, escondido na ideia de miscigenação ou ainda na negação de sua existência, impediu e impede que a população negra, que corresponde a mais de 51% dos habitantes do país e a cerca de 48% dos universitários brasileiros, conforme dados do IBGE, tenha o devido reconhecimento na contribuição da intelectualidade. Um país mais igual e plural passa, obrigatoriamente, por oportunidades paritárias e pela reparação das injustiças históricas. Um pensamento que foi sintetizado por Milton Santos em 1989, mas que, com a característica que é peculiar aos intelectuais, transcende o tempo. “Nossa esperança é que vivemos a era da ciência e da técnica, mas também da inteligência, que significa que os que estão lá embaixo, podem vir para cima”, declarou o intelectual brasileiro, Milton Santos, em uma de suas conferências.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 12 de novembro de 2023.