por Jailma Santos*
Pai Francisco entrou na roda tocando o seu violão dororón dondón
Vem de lá Seu Delegado e Pai Francisco foi pra prisão.”
Esta é uma estrofe de uma canção popular infantil do nosso folclore brasileiro, é também a epígrafe do primeiro livro da sequência ofertada aos reeducandos do Programa A Leitura Liberta, “Pai Francisco” de Marina Miyazaki Araújo.
“- Mãe, cadeia não é pra bandido?
Meu pai não é bandido, né?
Meu pai não está preso não, né? Hein, mãe?...
Por que ele tá preso, hein, mãe? Mãe...”
São os primeiros questionamentos trazidos pelo personagem principal da história, o filho de Francisco, um garotinho que vive longe do pai à sua espera e sofre com as consequências dessa distância. Iniciando pela literatura infantil, os livros aguçam a curiosidade dos novos leitores, seja pela proximidade da temática com o seu contexto atual ou pela curiosidade do desconhecido.
O Programa A Leitura Liberta é um projeto de ressocialização executado nas penitenciárias e cadeias de toda a Paraíba pela Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (Seap), derivado da Resolução n° 391/2021 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que estabelece procedimentos e diretrizes para o reconhecimento do direito à remição de pena por meio de práticas sociais educativas em unidades de prisionais. Em seu artigo 5° está disposto o direito a remição de quatro dias de pena a cada obra efetivamente lida e avaliada, estabelecendo também os limites: prazo de 12 meses e total de 12 obras, com a possibilidade de remir até 48 dias.
Neste projeto o reeducando inicia a sua trajetória com a leitura de um determinado livro de menor complexidade e segue uma sequência didática até o 12°. Esses títulos foram sugeridos pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) em uma doação de obras literárias realizada para todo o sistema penitenciário brasileiro, a Paraíba recebeu cerca de 18 mil exemplares.
“Cada livro que eu leio é uma nova descoberta”
Porém a leitura nas unidades prisionais da Paraíba já era realidade mesmo antes deste projeto que confere a remição de pena. Em 2014, foi fundado o Clube da Leitura por sugestão de um reeducando da Penitenciária Desembargador Sílvio Porto, em João Pessoa. Apesar de sua reclusão, pôde contribuir positivamente para a educação de seus colegas. A Lei de Execução Penal n° 7.210/1984 estabelece o direito da pessoa privada de liberdade à educação, cultura, atividades intelectuais e o acesso a livros e bibliotecas, ressaltando a finalidade de reintegração social.
“Eu só pretendia ganhar a remição, não tinha interesse nenhum em ler o livro em si. Mas foi lendo um livro e outro que eu comecei a me apegar e gostar. Foi assim que eu embarquei nessa aventura, a cada livro que eu lia era como se fosse uma nova descoberta.” Afirma um dos reeducandos que integrou o programa. É fácil perceber que o interesse inicial daqueles que estão reclusos é ganhar os dias de liberdade, um dia a menos que seja faz toda a diferença. Porém, o poder da leitura é tão forte e transformador que vislumbra a todos. “Continuei lendo, me habituei e virou para mim uma rotina. Essa leitura me abriu os horizontes, me deu vontade de voltar a estudar, concluir um curso e seguir a minha vida.”
Este reeducando nos deu um depoimento sobre a sua mudança de vida que aconteceu através do seu acesso aos livros:
“Enquanto eu estava em regime fechado, a leitura para mim foi um alívio muito grande. Além do trabalho que eu fazia regularmente, a leitura era algo a mais para ocupar as minhas horas vagas e me fazer pensar em uma nova vida, uma nova realidade (...) A minha rotina atualmente, já em liberdade, continua sendo de leitura. Eu voltei a estudar apesar da minha idade, 54 anos, faço um curso técnico e já estou planejando fazer um curso superior. Trabalho durante o dia e estudo à noite, mesmo assim não abandono os livros, porque cada livro que eu leio é uma nova descoberta.”
E ele deixa um recado para as pessoas que não leem:
“Se vocês não tentarem, nunca irão ter o prazer de descobrir o que é a leitura, pois só através dela – posso falar com toda a certeza – que tive muitos benefícios. Eu escrevo melhor, entendo melhor as palavras que muitas pessoas falavam e eu não entendia. Para mim, foi um diferencial de vida, quando eu me perguntava: e agora? Perdi meu emprego, estou encarcerado, perdi tudo, a sociedade lá fora não vai me aceitar, e agora? Foi daí que descobri uma nova vida. Através da leitura, eu vejo que posso estar com 60, 70 anos e não vou parar de estudar, não vou parar de ler.”
Outro reeducando falou sobre como chegou até o projeto e demonstra o orgulho que sente por ter sido a inspiração da própria filha começar a ler:
“Eu fiquei sabendo através de outro apenado do mesmo pavilhão, ele me apresentou a leitura como algo muito bom, mas de início só passei a ler interessado nos dias de remição. Porém, a leitura entrou na minha vida como algo novo, me ajudou com as palavras, me trouxe calma e paz. Quando eu leio é como se estivesse em uma viagem, consigo entrar na história do livro, só quem lê sabe como é (...) Eu tenho uma filha de 12 anos e ela também está criando o hábito de ler. Foi algo que ela viu em mim e copiou para a vida dela. Hoje ela lê muito bem e até me indica livros. O que a leitura me trouxe é para toda a vida.”
Segundo dados de uma pesquisa realizada no ano de 2021 pela ONG Ação Educativa: 80% das remições prisionais são proporcionadas por trabalho, 17% pela educação formal e apenas 1% pela leitura de livros. É necessário reforçar a importância da leitura, não apenas como forma de remição de penas, mas como ferramenta de transformação social.
Reflexos positivos
Todo esse incentivo a leitura reflete nos impressionantes dados de aprovações do ensino regular: mais de 170 aprovados no Exame Nacional para Certificação de Competência de Jovens e Adultos para Pessoas Privadas de Liberdade (ENCCEJA PPL 2020), 224 reeducandos aprovados no Exame Nacional do Ensino Médio para Pessoas Privadas de Liberdade (ENEM PPL 2021) e 79 selecionados pelo Sistema de Seleção Unificada (SISU).
“Meu pai tem que vir logo, porque todo mundo fica me falando pra comer salada pra crescer.
Mas eu não posso crescer agora, preciso esperar meu pai”
Assim como o filho do Pai Francisco, personagem principal do primeiro livro apresentado no Programa A Leitura Liberta, descreve em sua narrativa questionamentos e expectativas, mundos inteiros de conhecimentos e reflexões estão à espera nas mais diversas histórias dos livros seguintes.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 26 de junho de 2022.